As doces laranjas do Tomboco
A banheira de plástico estava cheiinha do sol amarelo das laranjas. E as laranjas tinham cada uma a sua hastezinha com uma folhinha verde que pintavam de serena agricultura o caminho da quitandeira no passeio.
Parei o carro e perguntei, mãezinha, quanto é o monte de laranjas? É quinhentos kwanzas, pai, me respondeu ela, o olhar solícito, a alegria nos olhos. Encheume um saquinho de plástico. Quatro laranjas. Dei-lhe uma nota castanha de 500 kwanzas. Mais barato que no shopping. Obrigado, papá, me disse a senhora da banheira cheiinha de laranjas.
Antes de repor o carro em marcha, quis saber, mãezinha, essas laranjas vêm de onde? Essa laranja é do Tomboco, pai, esclareceu a quitandeira de pés empoeirados, saia pelo joelho, blusa amarela esticada pelos seios fartos de amamentar, a rodilha na cabeça para amaciar o peso da banheira cheiinha de laranjas e o pano do dinheiro rodando-lhe a cintura maternal.
Descasquei uma laranja e chupei um gomo. O sumo era gostoso, e misturava na minha boca a oblonga aspereza das sementes. Não é como a laranja importada, pensada nos laboratórios, que não traz semente. Então imaginei o país todo, de Cabinda ao Cunene, abastecido de laranjas doces do Tomboco. Imaginei o próprio Tomboco, ali na província do Zaire, todo ele amarelo com os sóis minúsculos dessas laranjas a pender das copas verdes dos laranjais. Imaginei os pomares dos agricultores a perder de vista, num quadro repleto de beleza que inspiraria o grande naturalista da pintura angolana, Neves e Sousa. Imaginei os navios a transportarem caixas e caixas de laranjas do porto do Zaire para Cabinda, Benguela, Luanda e Namibe. Do Namibe, caixas e caixas de laranjas a irem de comboio para o Cuando Cubango.
Nesse meu doce devaneio, somei uma saudade docinha de quando, no tempo do colono, a minha irmã enviava de Silva Porto para Luanda, nos meses de Cacimbo (que é quando as laranjas amadurecem), uma caixa de laranjas docinhas como mel, no frete baratíssimo duma companhia de viação. Essas laranjas eram diferentes das do Tomboco. Tinham um mamilozito num dos pólos. Mas também tinham sementes. Toda a fruta natural tem sementes. Então pensei, se investíssemos na produção de laranja no Bié, os cidadãos do Moxico podiam comer as laranjas que iriam desde o Kuito, de comboio, passando pelo Huambo, onde ficariam umas boas toneladas dessas laranjas com um pequenino mamilo sumarento. E de comboio iriam também para a Huíla e para as Lundas. E voltei a imaginar, desde Cabinda até ao Cunene, as laranjas nas mãos das crianças das escolas, na hora abençoada do lanche. Imaginei os restaurantes a servirem aos clientes sumo natural de laranja. A 100 ou 200 kwanzas o copo. Não mais como agora, que um simples sumo natural custa 1.200 kwanzas. Porque, quando há muita produção, o preço anicha-se no bolso do consumidor. Assim a falar com os meus botões, acabei de comer a laranja e guardei as sementes num guardanapo de papel. Um dia, quem sabe?, ainda arranjo uma terra e planto um laranjal.
Nessa fala com o autor desta crónica, desenhei o comboio até Malanje cheio de laranjas. E o comboio passando por Viana e Catete e deixando laranjas. Imaginei Angola a exportar laranjas docinhas do Tomboco e do Bié. E veio à minha mente o conto de Gabriel García Marquez, “A Incrível e Triste História da Cândida Herêndira e sua Avó Desalmada”, um conto povoado de laranjas que escondiam uma pepita de ouro no polme.
Vos escrevo esta estória: as pepitas de ouro das nossas laranjas a viajar nos transportes rodoviários, ferroviários e marítimos, bem organizados na mão do privado como manda a economia de mercado, o sol doirado das nossas laranjas preservado em contentores frigoríficos no sítio da partida e no local da chegada. Esses miúdos que andam por Luanda com um carrinho de mão das obras a vender banana-pão, cebola e tomate, vendendo as laranjas do Tomboco montados em bicicletas de três rodas, com a carroçazinha à frente. As quitandeiras de laranja, como no tempo do colono, embelezando os passeios com as suas banheiras cheiinhas da doçura amarela. Os nossos passeios não têm de ser exactamente como os passeios da Europa e da América. Quitandeira de Luanda tem pregão de peixe, é macoa, é boa macoa, minha senhora, e tem o pregão, compra laranja docinha, como cantou o Poeta na Sagrada Esperança. Quitandeira não é zungueira. Conheço a diferença, porque também sou quitandeiro de palavras e zungueiro de sorrisos, que tristezas não pagam dívidas. Da Vida, herdei a imaginação de poeta e o doce sabor das laranjas no céu da boca. Mas não quero nunca ter saudades das laranjas do Tomboco, como tenho agora das laranjas que vinham de Silva Porto, no tempo do colono. Porque ter saudades é não ter a coisa de que se tem saudades. Queria era ter, durante o ano inteiro, o sol doce dessas laranjas a arder na minha garganta.