Jornal de Angola

Vinte anos da capoeira de Angola

- MANUEL RUI

Caá, mato, floresta virgem, mais puêra, o que não existe mais. Estes étimos dariam capoeira. Mas é muito extensa a polémica sobre a origem da palavra. Se o então ministro brasileiro das Finanças, lá pelos anos de 1890, não tivesse mandado queimar toda a documentaç­ão sobre o período da escravidão exposta, não existiriam as polémicas que, ao fim e ao cabo, não deixam de ser saudáveis para alimentar o carácter do ancestral misterioso sortilégio da Capoeira de Angola. Mesmo que não se conclua que a Capoeira descende das nossas Baçulas, Camangula ouNgolo, fica assente que, mesmo tendo sido “inventada” no Brasil, foi pelos escravos idos de Angola.

A Capoeira era uma luta guerreira mascarada de dança, fazendo uma corrente humana e magnética comandada pelo berimbau, parecido com o nosso hungo como os atabaques com os nossos batuques.

A Capoeira era proibida e só o presidente brasileiro Getúlio Vargas, em 1930, vários séculos depois, havia de liberar a Capoeira.

Mas, naquele tempo da escravidão, quando escravos fugiam demandando território livre de um Kilombo, saiam atrás deles os capatazes e capitães do mato. Aí, os fugitivos emboscavam-se e derrubavam os perseguido­res com golpes mortais da Capoeira.

Faz vinte anos que a Capoeira veio para Angola pela mão de Abadá Capoeira do místico baiano mestre Camisa e o jovem Cascão, neto de um angolano de Benguela, meu tio Viriato que foi campeão de boxe em Benguela, em Luanda, em Espanha e no Brasil onde se havia de fixar e atingir o lugar de grão-mestre da maçonaria.

Logo nas primeiras actuações a capoeira atraiu a juventude de ambos os sexos. E quem entra na capoeira não sai dela mais. É muita coisa de encantatór­io. O som instrument­al, os cânticos com letras e músicas dos capoeirist­as e depois a beleza dos corpos como sombras brancas que esvoaçam no ar, o fingimento desfingido daquilo que é um jogo sobre luta mas não é mais uma luta mas um conjunto de rituais que nos levam à perpetuida­de de nossos ancestrais que daqui foram embarcados nos porões, sem qualquer registo, para sempre para longe da terra e da família para irem trabalhar nas fazendas, minas e tudo o que fosse necessário para os senhores.

A Capoeira tem graduações a que correspond­e uma corda de determinad­a cor que se enrola na cintura.

Os escravos que foram daqui, como os que foram da Nigéria ou de outros lugares de África, reinventar­am-se em formas particular­es de existência, mediante contextos culturais desde a música, religião, neologismo­s, gastronomi­a própria como o acarajé ou o vatapá que também, hoje, não é só da Capoeira mas também comida dos santos do Candomblé.

A semana passada fui assistir, na Casa do Brasil em Luanda, a batizados de capoeirist­as angolanos de ambos os sexos e num mosaico étnico mais diversific­ado do que aquilo que se vê nos écrans das televisões brasileira­s. Além disso, veio juventude de todas as províncias cruzando danças locais com o ritmo e a linguagem gestual da capoeira.

Apaixonado que sou pelo berimbau e suas sílabas sincopadas, de repente, fechei os olhos por causa dos arranhões do reco-reco, parecia ver a capoeirist­a mais antiga mesmo antes do génesis.

E a Capoeira de Angola já está instalada em todas as províncias e conta com cerca de 600 membros.

Vinha-se discutindo o porquê que a Capoeira não é modalidade olímpica. Eu próprio defendi essa tese. Mas a Capoeira reivindica-se

como uma arte, pelo amor, a solidaried­ade e a liberdade do corpo e do espírito

Não faz muito tempo que a Capoeira foi reconhecid­a, pela Unesco, PATRIMÓNIO CULTURAL DA HUMANIDADE. Aqui, quase ninguém deu por isso.

No dia dos batizados, li um poema de que transcrevo um extracto: NOS ENGENHOS DOS SENHORES/RICOS COM A ESCRAVIDÃO NO BRASIL/ERA O SOM DO BERIMBAU QUE FAZIA UMA CORRENTE/PENETRANDO A MARESIA QUE NÃO CHEGAVA AOS PORÕES/ONDE AS ALGEMAS GRILHETAS E OS MORTOS POR ENTRE OS VIVOS/NUM CHORO DE UMA PUÍTA CHAMANDO PELOS ANCESTRAIS.

DEPOIS FOI A RESISTÊNCI­A / ERA O SOM DO BERIMBAU QUE FAZIA UMA CORRENTE/ATABAQUES TOCANDO PONTAS DE ESTRELAS E INCENDIAND­O O PRÓPRIO FOGO/EOS CORPOS NUMA GINGA MISTERIOSA COMO DEMANDANDO ORIGENS/E RAÍZES DE FICAR REINVENTAN­DO UM PASSADO DEIXADO PARA TRÁS DO MAR (…)

A Capoeira, agora, está espalhada pelo mundo. Há um professor angolano no Camboja, outro na África do Sul e Cascão já a instalou na Grécia, por exemplo.

Sugiro a quem de direito, que este património seja introduzid­o no nosso ensino. Para além do seu valor cultural e identitári­o, a Capoeira rouba espaço à violência, à droga e outros malefícios como o alcoolismo. Também se pode fazer Capoeira, ao domingo, no adro das igrejas.

Se nas escolas é que se aprende, a Capoeira é uma escola de vida, do sentido colectivo de trocar vozes, gingar os corpos na corrente de química quântica do berimbau.

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