As sementes e a terra
É em Setembro. Os pássaros voam mais na busca de lugar para novos ninhos. Setembro, do fim do vermelho das queimadas abrindo mais a luz das estrelas e da lua no tecto infinito que é o céu. Das queimadas com o cheiro a fumo da nossa vida que vai renascer por cada semente. A vida é tão escassa que não seremos nada se não formos sementes para multiplicar os celeiros de distribuir o acumulado com os braços e o pensamento de todos que devem passar por aqui vivendo e não pateticamente a ver os outros sofrer. Os que perderam a memória, os que esquecem Setembro, aqui no planalto. Do ciclo da água das nascentes como um fio magnético que se alonga e alarga até à imensidão do mar tanto navegado por escravos para terras de Zumbi do Quilombo dos Palmares, descendente de angolanos, resistente e herói contra a tirania dos esclavagistas donos dos engenhos de açúcar em Alagoas, no Brasil reinventado África no Candomblé. Falo das sementes nas mãos dos camponeses. As sementes, a água, o sol e a frescura da noite. E as vontades da chuva. E o luar a dançar tão de mistério pelos batuques. Falo das sementes que os camponeses lançam à terra preparada para germinar as colheitas. A terra é o ventre, a mulher a germinar pelas sementes e a mulher é a vida. A mulher é a terra. A terra, a nossa mãe. Por isso construo uma etende, a casa redonda onde posso pensar com todos as verdades todas e construir outras, porque as verdades para além de construírem o mundo conseguem falar a verdade sobre as mentiras e encher o ekuku ou o onano, os celeiros, de paz e amor com o aroma das maçarocas de milho ainda frescas, umas que voltarão ao ciclo do grão e outras para o alimento que nunca se deve perder por falta de caminhos que o possam levar a outras bocas.
Os rios nascem todos aqui. A riqueza está toda aqui. Por cima da terra a água é farta. Rios, lagos e lagoas, cascatas, cataratas e misteriosas águas subterrâneas. Árvores e florestas a perder de vista. Os espíritos dos ancestrais que atravessaram os mares para a escravatura, conseguiram, por esse tributo que aqui, na nossa terra, não pairassem cataclismos. Nem terramotos, nem vendavais. Os ancestrais conseguiram, de sofrido xinguilamento, deixar-nos uma herança de terra sem conflito com o céu, o vento, os rios ou as águas do mar. Então, as mãos, os pés, o pensamento do camponês, a enxada, aquela mais pequena que usam as mulheres, a etemo, merecem uma consagração de eternidade ante a ilusão daquilo que tem força de riqueza mas um dia acaba. E mesmo antes de acabar, com o vento dos remoinhos do cacimbo, na minha terra, nós os miúdos, apanhávamos doença dos olhos que as nossas mães tratavam com dolorosas gotas de limão para aprendermos a não brincar com remoinhos de areia em brasa.
Os camponeses, semearam sempre a terra. Foram combatentes para a liberdade, deixaram as suas casas por mor da guerra e fugiram de onde os elefantes já tinham fugido também por mor das armas, do cheiro a pólvora, a cadáveres e do barulho dos bombardeamentos e dos aviões. Depois chegou a paz das pazes. E os camponeses sobreviventes, com fome e andrajosos, voltaram às suas antigas terras, suas milenarmente, recomeçaram com a ideia da semente na mão para renascer a terra, fizeram colheitas de subsistência, e a memória genética dos elefantes fez com que voltassem às suas terras, arrasando as casas dos camponeses que haviam fugido e ocupado terras de onde haviam fugido os camponeses.
A terra é onde o pensamento dá mais luz à vida com a enxada, o arado, a charrua, o celeiro e a panela a fumegar, dentro de uma casa com o fumo a sair pelo tecto do capim e o insalivar das nossas bocas para o lombi quente com um pirão de fuba da pedra e a chuva miudinha a cair como se completasse um solene ritual de existir.
Não preciso de importar loengos, nem nochas, lombulas, maboques. Nem bagres nem cacuços. Mas preciso que transportem o excedente do que faço com as sementes para outros lados. Comprando ou trocando por outras coisas. Prefiro uma bicicleta e fósforos a um poço de petróleo. Também gosto de beber um quente mas quero remédios para os meus filhos que já vão à escola e aprendem coisas que eu não sabia e ajudam-me a ter razão. Disseme o meu filho mais novo que quem não tem sementes para todos no pensamento agarra a terra com as mãos como se fosse uma montanha de dinheiro. Afinal, mesmo assim valeu a pena. Na escola é que se aprende aquilo que não sabíamos ou sabíamos mas não éramos capazes de dizer ou só dizíamos, nas noites de frio com a lenha a arder dando calor ao nosso feliz cansaço das sementes e das enxadas com que fazíamos a nossa vida de dia.
Tenho uma enxada na mão. Muitos ganharam muito. Com trabalho que não sei. Mas de tudo no entanto, meus filhos vão à escola e aprendem coisas novas, com elas inventam outras como se fossem sementes dos calos das minhas mãos.