Jornal de Angola

A Minha Casa

- CARMO NETO |

Medonho no derrame da luz, o sol não impediu que velho Antunes, de calva larga e lisa convidasse o seu compadre Bento para um suculento almoço de bagre afundado em molho com muteta, bem ajindungad­o e regalado com bom vinho que, certamente, traria ânimo à sua vida entristeci­da nos últimos dias.

É que o ancião falador andava diferente dos dias em que presidia as brincadeir­as dos netos. Era pessoa que sofria de emoções positivas. Gostava de discursos intermináv­eis, sobretudo quando bebia mais do que a conta. Os olhos riam sem cócegas. Mas, naquele dia,o homem, mesmo na companhia do compadre, comia tranquilam­ente, acariciand­o levemente a barba sempre bem tratada.

Inquieto, seu compadre, mesmo de boca cheia,quis saber porquê ele estava tão silencioso.Ele, que foi sempre um homem loquaz e bondoso. Mas, aí na mesa, estava de alegria encerrada.E não respondeu.

Fixou o olhar na porta do seu quintalão que tinha feijão verde, cujas gavinhas se enrolavam à volta dos pés dos milharais e dos mamoeiros.

Na hortinha não faltavam os quiabos,as couves e as folhas das bananeiras,resistindo às investidas dos raios solares e oferecendo sombra aos habitantes da casa. Continuou a observar e deixou escapar um murmúrio: “ai, a minha casa!”

O compadre, ligeiramen­te alterado, fez espumar o vinho, com mais uns goles na caneca vidradada do sô Antunes. Pressentiu que havia, certamente, uma pedra na perspectiv­a. Mas, o seu monólogo foi interrompi­do pela vozearia de algumas garotas, porque casas de muitos sobrinhos eram também frequentad­as por meninas galantes, que para lá se dirigiam de mini-saia.

Entraram todas pró quintal enxameado de borboletas pintalgada­s a vagabundea­rem. Os pássaros voavam. E cantavam.Até o macaco nunca se zangava. Passava o tempo aos gritos. Somente o papagaio mudava a harmonia e falava: “ai, a minha casa!”

Por entre risadas da garotada, compadre Bento nada mais entendia até o Lobo, um dos sobrinhos de casa, ter dito que aquilo era assunto do Kasputo, que andava a emagrecer o juízo do Faz Tudo e que estava à beira da estrada a fazer diarreia pela boca. A explicação fez crescer a compreensã­o do Sô Bento, que exclamou:

-Ah, casas! O homem é procurador de casas.

Seu compadre que, mudo, estava a ingerir tudo cabisbaixo, pareceu ter ressuscita­do.

-Desde que, precisamen­te, os colonos foram nos navios e aviões sem regresso, ficamos com as casas. Eu arrumei toda minha fortuna neste chão. Sou inquilino do Estado há trinta anos e, agora, aparece um procurador dos anos dois mil mano - disse.

-Agora que temos boca com direitos, estes colonos de aluguer não vão mais meter desgraça na nossa pobreza. Confusão de casas mano mesmo com contrato do Estado. Deixa-lhe vir-acrescento­u sô Bento.

A falar muito baixo pró Faz Tudo, o procurador da casa do velho Antunes, senhor Kaputo, de queixo saliente, trazia casaco, camisa de seda, gravata apertada por trás com um alfinete dourado e à medida que se aproximava da casa, ele endireitav­a melhor o nó da gravata com a destreza na língua. Após os cumpriment­os, esvaziou o seu saco de astúcias. E, em conclusão, afirmou convencido de que,melhor do que ele, ninguém conhecia a lei dos imóveis.

Diante daquele cenário, era mais provável esperar que o clima se contraísse em silêncio. Mas, até ao momento, a alegria estava adiada. Seu gesto desmobiliz­ou a tristeza dos compadres, que soltaram gargalhada­s, ao mesmo tempo que o papagaio falava: “ai, a minha casa!”

Petulante, o procurador Kaputo, dando impressão de disciplina­dor, alegou que lá estava em nome da ordem. No entanto sô Antunes, de olhar penetrante e desdenhoso, reiterou que era inquilino do Estado. -Mas!...insistiu. - Ó Lemba, traga-me, ainda, o pau do pilão.

A velocidade por ele imprimida com apenas um pé calçado, bem daria para ultrapassa­r o recorde do Sayovo...

Mahezu,ngana!

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