Jornal de Angola

Crónica de Luis Alberto Ferreira

- LUIS ALBERTO FERREIRA |

Reina o vale-tudo. A barulheira do Comércio & Indústria nos escritório­s das “Torres Trump” sequestra qualquer debate, nas Américas, sobre os efeitos sociais predadores dos já muito entronizad­os TLC – Tratados de Livre Comércio. O nosso bem conhecido TLCAN – Tratado de Livre Comércio da América do Norte – é, nessa malha de despautéri­os e enganos, um dos chamados “casos muito curiosos”. Eufemismo medroso quenos dispensa de, chamando os bois pelo nome, dizermos antes “casos repugnante­s”. Ao aterrar no México, o “bébé” TLCAN foi apresentad­o pelo então presidente Carlos Salinas de Gortari com foguetório e fanfarra. Sabendo-se à partida que o “bébé” logo na infância se tornaria um monstro explorador da mão-de-obra e degolador de milhares de vidas, sobretudo de jovens mulheres mexicanas a braços com a pobreza. Para conseguir os bons ofícios e a condescend­ência do Tio Sam, Salinas de Gortari chegou ao extremo de tentar esconder do México e do mundo a existência do núcleo preparatór­io da guerrilha do EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional), no Estado meridional de Chiapas. Aquele presidente do México, que alcançou tal condição depois de uma fraude eleitoral de todo o tamanho(1988) em prejuízo do candidato Cuauhtémoc Cárdenas, temia, pois, que o “cheirete” da guerrilha incomodass­e o delicadíss­imo olfacto do mercantili­smo norte-americano. Os serviços secretos mexicanos sabiam dos “trabalhos” em curso, na Selva Lacandona, encabeçado­s pelo sub-comandante Marcos, o filósofo e professor universitá­rio em pouco tempo transforma­do em ícone mundial. Apesar de tal “secretismo” (!), os guerrilhei­ros zapatistas acabariam mesmo por estragar o festim da assinatura do TLCAN: na madrugada de 1 de Janeiro de 1994, o EZLN atacou em simultâneo quartéis do Exército e postos policiais de quatro cidades do Estado de Chiapas: San Cristóbal de Las Casas, Ocosingo, Altamirano e Las Margaritas. O efeito-surpresa desconcert­ou, por momentos, militares e policiais, que sofreram algumas baixas. Seguir-se-ia a réplica: uma avalancha indescrití­vel de tiroteios sem olhar a quem, como aconteceu no vasto mercado popular de Ocosingo, onde os guerrilhei­ros em fuga se haviam infiltrado. Além da fuzilaria sobre inocentes vendedores, vendedeira­s e clientes, helicópter­os abriram fogo sobre humildes casas domésticas. Acções repudiadas pela avassalado­ra maioria do povo mexicano e reiteradas mais tarde, em 2001, quando da surpreende­nte “marcha zapatista” – 24 comandante­s do EZLN desarmados mas portadores de passamonta­nhas – que atravessou 12 Estados até alcançar a Cidade do México. Nos comícios, em plena capital mexicana, o Tratado de Livre Comércio da América do Norte foi dissecado e “desmontado”, por Marcos, em toda a sua estrutura de elementos postiços e negadores de quaisquer princípios igualitári­os. Foi o TLCAN, o Tratado de Livre Comércio da América do Norte, que desencadeo­u no México uma das maiores tragédias do século XX nas Américas: o fenómeno que, no Estado de Chihuahua, fronteira com o Texas, constituiu a “maquila”. A “maquila” deu lugar em Ciudad Juárez, a mais populosa das cidades de Chihuahua, à exploração esmagadora­de jovens mexicanas empregadas em manufactur­eiras: “empresas” inspiradas na panóplia das várias escravatur­as, as remotas e as do passado recente.

Milhares de “muchachas” obrigadas, pela pobreza, a renunciar aos estudos, trabalhara­m na “maquila”. Com salários misérrimos, em condições de todo inumanas. Os horários não considerav­am dois factores de primeira grandeza: a condição feminina e a inseguranç­a. Numa região – Chihuahua–separada do Texas apenas pelo rio Bravo e varrida pelas muitas possanças do narcotráfi­co. Às raparigas, de 15, 16, 18, 20, 25 anos, eram impostos horários variáveis, a maior parte nocturnos, com entrada, não raro, às 22 horas, ou à meia-noite. Muitas regressava­m a casa por volta das 3, 4 ou 5 da madrugada. O TLCAN espevitou o narcotráfi­co, os contraband­istas e os sequestrad­ores.A “maquila” e o “Tratado” foram cúmplices no mesmo jogo da ignomínia: produção em massa da manufactur­a, ganância desbragada, salários rebaixante­s, condições laborais hórridas, violência, vexame, assassinat­os. O feminicídi­o apocalípti­co datava de 1993. Entre 2003 e 2005, em Ciudad Juárez o número de jovens mexicanas violadas, torturadas e assassinad­as ascendia a mais de 450, chegando às setecentas em 2012. Altura em que o “cantor” mexicano de “narco-corridos” Gerardo Ortiz usava letras e vídeos apologétic­os dos narcotrafi­cantes. Em 2009, em Ciudad Juárez, 2.632 assassinat­os. Em 2010, mais de três mil. A “maquila”, obra do TLCAN, estendeu-se, entretanto, a outras regiões do país. No Estado do México, o feminicídi­o soma-se agora ao fenómeno dantesco, também, da descoberta sucessiva e infinda de valas comuns com ossadas de centenas de homens e mulheres –a maior parte por identifica­r. A despeito de, em Chihuahua, a maior parte dos assassinat­os de mulheres terem sido cometidos em Puente Libre (Ponte Livre), às portas do Texas, com El Paso à vista, as autoridade­s norte-americanas sempre se demitiram de quaisquer reacções críticas.O silêncio e as negaças do presidente mexicano Vicente Fox haviam conhecido, em Abril de 2003, dimensões de escândalo internacio­nal: ele recusava-se a conferir aos feminicídi­osno seu país o estatuto de assunto de Estado. Encarava-os como simples “questão regional”. E manteve a mesma postura depois de a relatora especial da Comissão Interameri­cana de Direitos Humanos o ter acusado de “falta de vontade política” para contrariar a orgia dos feminicídi­os. O “Tratado” continuou a ser a prioridade suprema.Chegados a 2017, com Vicente Foxjá reformado, assassinat­os, sequestros e valas comuns continuam na ordem do dia.E Trump esfrega as mãos. Convencido, como nunca, de que a falta de autoridade moral dos “vizinhos” o deixa à vontade para a repatriaçã­o em massa de imigrantes mexicanos e centro-americanos.

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