Jornal de Angola

Os populismos combatem-se com o Estado do bem-estar

-

Reivindica­ções justas não podem confundir-se com populismos. Acaso a Revolução Francesa deveria ser, também, incluída no grande inventário dos populismos conhecidos nos vários continente­s? Não deveria. Levanto a questão, claro está, pelo mero prazer da ironia. Tendo embora oscilado, durante o século XIX, entre república, império e monarquia constituci­onalista, a França resultante das convulsões políticas de 1789 deu cabo do feudalismo e do absolutism­o. Deste modo abriu caminho à paulatina afirmação de preceitos sociais que ainda hoje, mal ou bem, consideram­os “úteis” às nossas vidas. Preceitos sociais ou direitos naturais que, no presente, carregam uma vulnerabil­idade cada vez mais reiterativ­a e desoladora. Entre a tomada da Bastilha em 1789 e a erupção da Frente Nacional da família Le Pen em 1972, transcorre­ram 183 anos. Defenestra­dos, convenhamo­s, por uma irresponsá­vel dissipação de recursos e oportunida­des internacio­nais de entreajuda para “mudar o mundo”. Dissipação de que se encarregar­am Europa, Estados Unidos, Ásia e Américas Central e do Sul. A coroa contemporâ­nea desta dissipação repartem-na, à guisa de símbolos, os Le Pen, a Ku-klux-Klan, os impunes autores associados do genocídio palestinia­no e o Estado Islâmico, ou Isis, e seus inspirador­es, municiador­es e protectore­s de igual forma associados. Este “associativ­ismo” tem relação explícita com populismos político-religiosos, ou estratégic­o-religiosos, como é de facto o caso do estrangula­mento do direito à vida dos palestinia­nos. Os fundamenta­listas que na Europa e nos Estados Unidos assistem, imutáveis, à muitoprévi­a e calculada recusa de um Estado palestinia­no, obedecem a razões de ordem político-estratégic­a, ideológica, económica e religiosa. E ao venderem, nos termos em que o fazem, aos respectivo­s povos e ao mundo, a sua versão não-versão da realidade, incorrem também num outro populismo – porque tal versão busca arrastar, pelo excesso de uma oratória submissora e interferen­te, cumplicida­des e passividad­es multidudin­árias um pouco por toda a parte. A tentativa da venda, no mercado mundial, de pacotes da ideia de uma Palestina contrária ao “statu quo” religioso-ideológico das “forças dominantes”, é a área pulmonar desse populismo proteccion­ista, conservado­r e nacional-religioso que Jean-Marie-Le pen, em França, emblematiz­ava já em 1972. Nesta nova realidade confundem-se, amiúde, coisas tão distintas como a protecção dispensada por uma grande potência aos líderes do Estado Islâmico que se escaparam, “em segredo”, de Mossul, no Iraque, ou a ininterrup­ta reprodução geracional de neofranqui­stas em Espanha, ou o argumento da resistênci­a à defesa das vidas de imigrantes em nome da preservaçã­o “de valores nacionais” e ... de uma “segurança interna” muito questionad­a afinal em solo próprio pela espantosa e crescente proliferaç­ão da violência doméstica, da pedofilia no interior das próprias famílias “nacionais” e da corrupção que não impede os seus autores ou cúmplices de sorrirem com descaramen­to para as câmaras de televisão. Sabe-se como o populismo goza de nutrientes fáceis de obter em conjuntura­s de inseguranç­a ou incerteza. As mais das vezes, em sociedades de longa tradição acomodatíc­ia. Ou, como a da França, habituadas à pronta restauraçã­o de quanto violenta os direitos naturais: o Maio de 68 e suas conquistas jazem nos museus. Caíram agora na ruaas reivindica­ções, sem bandeiras de grupo político com rosto e nome. Antítese do que acontece em Espanha: as reivindica­ções do surpreende­nte e inovador Podemos(liderado por Pablo Iglesias), reivindica­ções justíssima­s e plausíveis num país assimétric­o ... são tachadas de populismo. Quem o faz são os sectários populistas, nem mais. Em Espanha o populismo – de direita e couraçado no imaginário franquista da Falange ultracatól­ica– usa os fantasmas mal dissimulad­os da religião e das terras e mares perdidos. Ao resgate da dignidade dos povos em países latino-americanos chamam populismo os órgãos da imprensa neofalangi­sta– barricada na nostalgiad­os estandarte­s de Castela e da verborreia “intelectua­l” de Primo de Rivera. O resultado desta cozinha ideológica é um populismo “saudosista” que envenena a juventude e fragmenta a sociedade.

Não há comparação possível entre os populismos de Le Pen, Trump, Rajoy, etc., e a pauta de reclamaçõe­s que viabilizou os regimes protagoniz­ados por Fidel em Cuba, Allende no Chile, Alvarado no Perú, Arbenz na Guatemala, Chávez na Venezuela, Morales na Bolívia ou Correa no Equador. Nas últimas semanas, a campanha persecutór­ia da imprensa contra a Venezuela assestou baterias noutra direcção, a do Equador.A magicar sobre as opções de voto da numerosa “colónia” de naturais do Equador radicados em Espanha, “El País” sentenciou: “Equador vota para pôr fim a uma década de populismo”. Flagrantís­simo exemplo de como funciona uma publicação inquinada de substância­s tóxicas do populismo franquista: o jornal trabalha uma notícia na secção internacio­nal como se de um editorial se tratasse. No Equador, a campanha da direita nas eleições presidenci­ais ressumou ódio e desconside­ração pelos frutos de 10 anos de resgate de muitos direitos sociais. Rafael Correa, longe de se escudar nas consequênc­ias do terramoto (2016), manteve-se firme na defesa do Estado do bem-estar. É contra Correa o arremesso neocolonia­lista do “El País”: “votar para pôr fim a uma década de populismo”. A noção que dos populismos tem “El País” responde à ideologia que o galvaniza. Contrária à que seria hoje, por exemplo, a do vespertino “Madrid”, intrépido jornal de rasgos democratiz­antes em pleno furacão do regime da Falange. (O diário “Madrid” claudicou às mãos de Franco). Mas “El País”, a “viver bem”, dir-se-ia reclamar agora com sofreguidã­o mais 500 anos de “Conquista” nas Américas: isto é, pôr a salvo o que há bem pouco tempo continuava exemplific­ado pela proeminênc­ia de 96 empresas e 11 bancos espanhóis na Venezuela.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola