CRÓNICAS DA LAMBULA
As hóstias do empreendedor
Habituado às contas do tempo do centralismo democrático, confesso ter franzido o sobrolho quando ouvi pela primeira vez a palavra empreendedorismo. Sobretudo, porque quem começou a proferi-la foram algumas pessoas que, alguns anos antes, defendiam a propriedade estatal sobre todas as empresas e unidades económicas como passo importante para a construção do Socialismo, cuja superação nos levaria à anulação do próprio Estado como tal e ao estabelecimento do comunismo.
Mas agora é o próprio Estado que toma a dianteira e cria os centros de formação de jovens empreendedores, onde se ensina a constituir e a gerir negócios apontados como elemento importante para a criação de postos de trabalho. As lideranças da área económica procuram convencer a banca a acreditar e a apostar nessas inciativas, conferindo-lhes créditos. Por questões ideológicas, as orelhas reagem, ficam hirtas.
Penso que talvez haja aí, a coberto de uma muito boa vontade declarada, um veneno liberalista; sou obrigado pelo meu passado que não é tão longínquo assim, a pensar que se procura criar um manto novo de diferenciação, sob a capa de supostas aptidões naturais; não me livro de pensar que o que se pretende mesmo é uma potenciação da banca e não dos “bancarizados” e pequenos “creditados”, porque, desbravada a terra e lançadas as sementes, vêm os grandes e abocanham tudo; e como tomei a vacina para a corrupção, penso sempre que aí há gato. Mas, como afinal sou optimista, também sou obrigado a acreditar em boas intenções.
Se não tivesse visto as reportagens que vi sobre as repercussões do microcrédito em muitas famílias pobres do Bangladesh, Índia e Paquistão, onde tudo começou e rendeu ao seu percursor um Prémio Nobel de Economia, talvez acreditasse mais. Mas vi. E então fico de pé atrás sempre que vejo peixeiras e quitandeiras receberem esses dinheiros, sabendo que amanhã vão ser corridas daqui, impedidas de vender ali, xinguilar por verem ser levados os seus produtos ou mesmo irem parar à cadeia por desacato ou desrespeito à autoridade. E o que se faz depois, quando não tiverem como devolver os créditos?
Dá-me comichão no nariz quando vejo atribuirem-se tricilos motorizados como meios de subistência, sabendo que o transporte de passageiros nesses veículos não é permitida por Lei; quando se gastam rios de dinheiro em campanhas de sensibilização contra o consumo de álcool, mas se abrem mais fábricas de bebidas alcoólicas e se importam até doses de veneno em pacotinhos; quando se defendem os valores morais e culturais, mas as misses concorrem com cabelos postiços importados; quando se propala a defesa do ambiente, mas se aposta em fábricas de sacos de plástico.
O mesmo penso da “casa própria” dos kilambas e afins. Conheço famílias que se aventuraram nessa empreitada sem terem rendimentos que garantam o pagamento atempado das rendas resolúveis ou que, se o fizerem, ficam sem a carne, o peixe e o leite. Talvez um dia lhes reste o pão e o chá, mesmo tenham de voltar a fazer pequenos negócios para pagar os livros dos filhos. E o que é pior, não existe uma cultura de poupança e vejo que a maioria, tal como eu, vive ainda um momento de deslumbre face às possibilidades que se tem hoje de comprar o que antes, devido à guerra, era sonho.
Mas, como disse, sou optimista. E talvez tenha de pôr de parte o meu lado comunista e aceitar uma join-venture entre a fé e o capitalismo, afinal, este último sempre foi o maior defensor das bases cristãs, pondo de lado o episódio bíblico da expulsão dos vendilhões do templo e, exibindo apenas aos pobres o dito de “a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”. A fé é para os pobres, que têm de pagar o dízimo; os ricos têm crédito e lugar reservado no elevador do céu. Foi na fé dos pobres que um primo meu encontrou o seu lado empreendedor e, acreditem, deu-se bem na vida.
Apanhado a pescar meixão no rio Mondego, em Portugal, acabou autuado e condenado por desacatos e crime ambiental. Os meixões são larvas de enguias muito apreciadas em Espanha e França, onde viram iguarias. Os pescadores portugueses facturam entre 300 e 600 euros por cada quilo desses seres minúsculos e, levados por esse engodo, pôem em risco todo o sistema ecológico porque, com as finíssimas redes que usam, matam toda a filharada de linguados, solhas, robalos e outros peixes.
Na cadeia, pensou no que fazer para endireitar a vida e encontrou um ramo em que investir o dinheiro que deixara escondido num saco enterrado no quintal. E se bem pensou, melhor o fez. Antigo sacristão, passou a ler sobre pastelaria e, em particular, sobre a forma de tratar da massa para hóstias. As paróquias da região mandavamnas vir da cidade grande. Era um terreno fértil para fazer negócio.
Poucos anos depois, negociava ao telefone a abertura de uma fábrica de velas ornamentais, enquanto conduzia um carro topode-gama. Quando passava diante da Casa do Povo ou de algum café da vila, os mais invejosos soltavam os maus fígados: “Lá vai o empresário das hóstias”. Deviam ser “homens de pouca fé”, porque o rapaz agora rico era apenas um “empreendedor”.