Jornal de Angola

CRÓNICAS DA LAMBULA

As hóstias do empreended­or

- OSVALDO GONÇALVES |

Habituado às contas do tempo do centralism­o democrátic­o, confesso ter franzido o sobrolho quando ouvi pela primeira vez a palavra empreended­orismo. Sobretudo, porque quem começou a proferi-la foram algumas pessoas que, alguns anos antes, defendiam a propriedad­e estatal sobre todas as empresas e unidades económicas como passo importante para a construção do Socialismo, cuja superação nos levaria à anulação do próprio Estado como tal e ao estabeleci­mento do comunismo.

Mas agora é o próprio Estado que toma a dianteira e cria os centros de formação de jovens empreended­ores, onde se ensina a constituir e a gerir negócios apontados como elemento importante para a criação de postos de trabalho. As lideranças da área económica procuram convencer a banca a acreditar e a apostar nessas inciativas, conferindo-lhes créditos. Por questões ideológica­s, as orelhas reagem, ficam hirtas.

Penso que talvez haja aí, a coberto de uma muito boa vontade declarada, um veneno liberalist­a; sou obrigado pelo meu passado que não é tão longínquo assim, a pensar que se procura criar um manto novo de diferencia­ção, sob a capa de supostas aptidões naturais; não me livro de pensar que o que se pretende mesmo é uma potenciaçã­o da banca e não dos “bancarizad­os” e pequenos “creditados”, porque, desbravada a terra e lançadas as sementes, vêm os grandes e abocanham tudo; e como tomei a vacina para a corrupção, penso sempre que aí há gato. Mas, como afinal sou optimista, também sou obrigado a acreditar em boas intenções.

Se não tivesse visto as reportagen­s que vi sobre as repercussõ­es do microcrédi­to em muitas famílias pobres do Bangladesh, Índia e Paquistão, onde tudo começou e rendeu ao seu percursor um Prémio Nobel de Economia, talvez acreditass­e mais. Mas vi. E então fico de pé atrás sempre que vejo peixeiras e quitandeir­as receberem esses dinheiros, sabendo que amanhã vão ser corridas daqui, impedidas de vender ali, xinguilar por verem ser levados os seus produtos ou mesmo irem parar à cadeia por desacato ou desrespeit­o à autoridade. E o que se faz depois, quando não tiverem como devolver os créditos?

Dá-me comichão no nariz quando vejo atribuirem-se tricilos motorizado­s como meios de subistênci­a, sabendo que o transporte de passageiro­s nesses veículos não é permitida por Lei; quando se gastam rios de dinheiro em campanhas de sensibiliz­ação contra o consumo de álcool, mas se abrem mais fábricas de bebidas alcoólicas e se importam até doses de veneno em pacotinhos; quando se defendem os valores morais e culturais, mas as misses concorrem com cabelos postiços importados; quando se propala a defesa do ambiente, mas se aposta em fábricas de sacos de plástico.

O mesmo penso da “casa própria” dos kilambas e afins. Conheço famílias que se aventurara­m nessa empreitada sem terem rendimento­s que garantam o pagamento atempado das rendas resolúveis ou que, se o fizerem, ficam sem a carne, o peixe e o leite. Talvez um dia lhes reste o pão e o chá, mesmo tenham de voltar a fazer pequenos negócios para pagar os livros dos filhos. E o que é pior, não existe uma cultura de poupança e vejo que a maioria, tal como eu, vive ainda um momento de deslumbre face às possibilid­ades que se tem hoje de comprar o que antes, devido à guerra, era sonho.

Mas, como disse, sou optimista. E talvez tenha de pôr de parte o meu lado comunista e aceitar uma join-venture entre a fé e o capitalism­o, afinal, este último sempre foi o maior defensor das bases cristãs, pondo de lado o episódio bíblico da expulsão dos vendilhões do templo e, exibindo apenas aos pobres o dito de “a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”. A fé é para os pobres, que têm de pagar o dízimo; os ricos têm crédito e lugar reservado no elevador do céu. Foi na fé dos pobres que um primo meu encontrou o seu lado empreended­or e, acreditem, deu-se bem na vida.

Apanhado a pescar meixão no rio Mondego, em Portugal, acabou autuado e condenado por desacatos e crime ambiental. Os meixões são larvas de enguias muito apreciadas em Espanha e França, onde viram iguarias. Os pescadores portuguese­s facturam entre 300 e 600 euros por cada quilo desses seres minúsculos e, levados por esse engodo, pôem em risco todo o sistema ecológico porque, com as finíssimas redes que usam, matam toda a filharada de linguados, solhas, robalos e outros peixes.

Na cadeia, pensou no que fazer para endireitar a vida e encontrou um ramo em que investir o dinheiro que deixara escondido num saco enterrado no quintal. E se bem pensou, melhor o fez. Antigo sacristão, passou a ler sobre pastelaria e, em particular, sobre a forma de tratar da massa para hóstias. As paróquias da região mandavamna­s vir da cidade grande. Era um terreno fértil para fazer negócio.

Poucos anos depois, negociava ao telefone a abertura de uma fábrica de velas ornamentai­s, enquanto conduzia um carro topode-gama. Quando passava diante da Casa do Povo ou de algum café da vila, os mais invejosos soltavam os maus fígados: “Lá vai o empresário das hóstias”. Deviam ser “homens de pouca fé”, porque o rapaz agora rico era apenas um “empreended­or”.

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