Jornal de Angola

Não sou desmancha prazeres

- CÂNDIDO BESSA |

Procurou-me há dias uma menina, prestes a tornar-se doutora de Jornalismo, a pedir conselhos sobre a minha profissão. Depois de quatro “intensos” anos a percorrer a faculdade, a menina está decidida em seguir a carreira de jornalista, com diploma e tudo. Lobo Antunes tem uma frase que acho genial: “Uma das vantagens da velhice consiste em chegar ao fim de um livro sem se lembrar do princípio e recomeçar sem ter a ideia de como acaba”. Assim me tenho sentido nesta profissão, depois de quase duas décadas de trabalho, se é que se pode chamar trabalho esta mania de andar por aí a contar histórias ou a narrar factos que nos acontecem.

Entreviste­i Presidente­s, mas também meninos de rua. Estive em palácios, mas também pernoitei em casas feitas de cartões, forradas com sacos de plástico, em noites de chuva. Em todos eles fui feliz, porque fiz o meu papel: contei histórias. Sempre evitei o papel de protagonis­ta. Julgo que o lugar de jornalista é na plateia. Ver, ouvir e sentir para contar uma boa história. E ao longo dos anos, rejeitei vários convites quando o assunto foi falar para os outros, principalm­ente para futuros doutores de jornalismo. Primeiro, por dificuldad­es de explicar o meu dia-adia nesta profissão. Depois, porque não sou um desmancha prazeres. Gosto que as pessoas sonhem e persigam o seu sonho.

Mas como explicar àquela menina, em vias de ser doutora, que o jornalismo não é para mim um trabalho, mas uma opção de vida. Fa- ço jornalismo para não morrer. Posso tranquilam­ente dizer que vivi, de facto, jornalismo, respirei jornalismo, estive vinte e quatro horas por dia no jornalismo. Em casa, já com os filhos e a mulher (mulher não é escrava, mas companheir­a de casa, como dizia o velho Armindo, o meu pai), estou sempre a pensar em leads. A minha vida foi ao longo deste tempo estruturad­a em colunas, títulos, ante-títulos, subtítulos, fotos e legendas. Agora, com o avanço tecnológic­o, acrescento o QPS, o Copydesk, Paginadore­s e outras manobras. Até hoje ainda acontece, ao tomar uma decisão, estruturar o meu pensamento em função das normas do lead, da mesma forma que um jogador de xadrez precisa de adivinhar o lance de resposta do adversário, antes de mover a peça. A regra é trazer o mais importante para o início, para prender a atenção do leitor.

De forma que quando aquela menina veio ter comigo, cheia de entusiasmo, fiquei mais preocupado que alegre. Devia eu transmitir abertament­e a minha experiênci­a àquela jovem alegre e cheia de disposição? Mas o que leva uma menina na flor da idade formar-se para trabalhar numa profissão como o jornalismo, com tantas opções bem mais interessan­tes na vida e sem os vários obstáculos e desafios que a minha profissão proporcion­a?

Ao longo deste tempo acompanhei vários jovens entusiasta­s. Só de chegar perto, de lhes ouvir falar, fazia-nos adivinhar um percurso genial. “Temos repórteres”! Para quem não sabe, repórter é a alma do jornalismo. Pode haver repórter sem jornalismo, mas não acredito em jornalismo sem repórter, sem reportagem.

Pouco depois, eis-nos novamente com o mesmo gosto amargo de traição na boca. Aquele a quem adivinhámo­s um percurso notável, não passa de mais um assalariad­o. É que chegam às redacções todos bem rotulados, ficam anos a aprender a trabalhar, depois alguns anos a aprender a não trabalhar e, no fim, apenas a receber salário. Sem iniciativa­s, sem criativida­de, sem paciência e, principalm­ente, sem disposição para o cumpriment­o do dever. Sou de um tempo em que nas redacções tínhamos sempre alguém para nos inspirar, através do exemplo. As minhas referência­s de vida, tirando algumas excepções, foram sempre pessoas ligadas ao jornalismo. É verdade que sempre admirei um Joaquim Dinis, um Ndunguidi, um Napoleão Brandão, um Jesus, um Bonga, um Eduardo Paím ou um Mamborro. Ainda assim, queria ser uma destas celebridad­es, mas do jornalismo. E nada melhor para inspirar as novas gerações do que o exemplo! Hoje temos vários doutores, mas sem a alma de jornalista. Uma questão que infelizmen­te as faculdades não conseguira­m resolver.

Mas não sou um desmancha prazeres. Por isso, sem coragem para dizer àquela menina, lembro uma frase que li certa vez em algum lugar: “Há sujeitos que trabalham tanto que não têm tempo de ganhar dinheiro”. Assim é o jornalista.

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