O gelado SAPU
Há muitas coisas do tempo antigo, de antes da Dipanda, que para sempre deixaram marcas na minha alma. De todas elas, duas há que estao tão perto da língua e do olhar: o gelado SAPU, vendido na casa com o mesmo nome, ali quem vai para o Baleizão, antes do prédio Treme-treme, e as casuarinas da Floresta da Ilha de Luanda.
O gelado SAPU tinha uma particularidade: era original, excessivamente branco como o leite das vacas estacionadas na filial da Sociedade Agro-Pecuária do Ungemaca, onde hoje existe o bairro com o mesmo nome. Nesse gelado não havia cá misturas. Nem chocolate, nem baunilha, nem morango, nada desses artifícios. O gelado SAPU tinha o sabor angelical e a textura ternurenta do leite. Para vos dizer a verdade, só uma vez comi esse gelado (agora diz-se chupar), só o comi uma única vez na vida, em 1973, porque eu não era da Cidade Alta e o gelado da SAPU custava dois escudos e quinhentos, muito dinheiro para o meu bolso, quem me pagou esse único e inesquecível foi o também inesquecível camba do peito, o Vértice, por solidadariedade, éramos do mesmo bairro, antigamente havia brancos operários em Luanda a morar no muceque, e esse meu camba era anti-salazarista.
A segunda memória indelével que guardo desses tempos que já lá vão é a imagem verde da Floresta, com aquela casa amarela do guarda-florestal, o pavilhão de sombra amena que se espraiava por sob o manto da copa das casuarinas, e o tapete de agulhas secas caídas dos seus troncos, onde nos deitávamos, candengues, a curtir a sinfonia das cigarras, o marulhar longínquo da contra-costa, algum canto altaneiro de cegonha.
Depois veio a Dipanda, com ela veio a guerra, os donos da Sociedade Agro-Pecuária do Ungemaca bazaram, os bois sumiram, a fábrica de gelados de leite puro fechou, os moradores da Ilha, na falta de gás, foram decepando as casuarinas, a casa do guardaflorestal deixou de ter serventia, e a Floresta perdeu o seu encanto, a sua frescura, hoje o que lá existe são mais nimis (cura-tudo), e das casuarinas apenas restam alguns troncos desgarrados a cortar os céus.
Mas quando eu passo ali pela zona do Baleizão, rezo uma avemaria ao gelado da SAPU: “Nossa Senhora, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de voltarmos e ter o nosso gelado genuinamente angolano”. É que, verdade seja dita, a maior parte dos gelados que em Luanda se consome, exceptuando o gelado de múcua, é tudo importado, quimicamente processado, é mais açúcar que outra coisa, em suma, um atentado à saúde pública.
E me pergunto: quando se há-de levantar um empresário neste nosso belo país, capaz de reproduzir o maravilhoso gelado de leite puro da SAPU? Vacas temos muitas no Sul. Engenho não nos falta. Pessoal para trabalhar também temos. É claro que a SAPU acabou, o que trazemos aqui à colação é essencialmente a originalidade daquele gelado. O nome pode ser qualquer.
E me pergunto: agora que já se enviam sondas até ao planeta Marte, será tarefa de todo impossível replantar as casuarinas da Floresta, limpar a lixeira que apodrece à sombra das árvores, voltar a fazer daquele polígono florestal um local aprazível para as crianças acamparem nas férias, ou o cidadão ir lá fazer o seu piquenique familiar?
Ele há recordações que não resultam de nenhum pretenso saudosismo colonial, nada disso. Há coisas que são universais, intemporais, como a moral e os bons costumes, o amor à Pátria e o desenvolvimento social. Todo o mundo sabe que quem muito importa pouco se desenvolve e quem muito produz gera riqueza nacional e combate o desemprego.
Ora, se produzirmos o nosso gelado natural, do leite das nossas vacas, deixaremos de comprar químicos da Europa que intoxicam os nossos organismos e criaremos uma nova imagem de marca e sabor genuínos que, degustados, entranham na alma dos candengues um apetitoso gosto pela Pátria.
E se tivermos mais amor à Patria, podemos voltar fazer da Floresta da Ilha o verdadeiro paraíso onde tantas semanas passamos a nossa candengagem, dormindo em tendas, comendo sob o vigor da seiva bruta e mergulhando nas águas suaves da baía.
O resto é conversa!