AS SUBESFERAS
Crónica de Luis Alberto Ferreira
Preternatural. O “palavrão” é decifrável. Basta ir ao volume IX do Grande Dicionário da Língua Portuguesa, que a editora “Amigos do Livro” pôs a circular em 1981. Temos, pois, que o significado do dito vocábulo (preternatural) nos remete para os dons conferidos a Adão e Eva, “juntamente com a graça no estado de natureza inocente”. Além da advertência, como que cautelar, assim explicada: “Estes dons preternaturais tinham carácter hereditário, mas perderam-se pelo pecado original”. Fenómeno cuja gravitação pareceu notória na torrente dos abraços apoteóticos trocados há dias, em Paris, por Donald Trump, visitante, e Emmanuel Macron, anfitrião. Preternatural pareceu ser, em, particular, o solene juramento do presidente gaulês: “Nunca a França quebrará a aliança com os Estados Unidos, nunca”. Na década de 1980 ter-se-ia dito, ou escrito, algures: “É o espírito de Paris”. O “espírito de” estava na moda.
Contrária a esta versão metafísica será antes “o espírito de Adão e Eva” a prevalecer, doravante, podendo mesmo ser opção titular na edição do “Le Monde Diplomatique” de Agosto próximo. Do campo metafísico passamos para as coisas práticas cuja carnalidade reclama urgência cirúrgica – para análise. Alguma imprensa ocidental propõe que o presidente da França desejaria, com os abraços, os rasgados sorrisos, os juramentos, “salvar Trump do isolamento”. Ou depurar Trump, dir-se-ia, das vibrações telúricas do “Primeiro a América!”. Um isolamento, o tal, que parece jamais ter preocupado o inquilino da Casa Branca. Supor-se-ia que, em sede institucional, “salvar Donald Trump do isolamento” fosse empreitada a cargo de acções combinadas dos países da União Europeia. É verdade que o presidente da França resumiu ao juramento de “fidelidade à aliança” a sua única incursão profunda de carácter político na preternaturalidade da visita. No entanto, distanciados, já, do imaginário de Adão e Eva, outros espaços de observação restolham à nossa volta. Sem recorrer ao maximalismo profético dos “infalíveis”, poder-se-ia pensar que o presidente Emmanuel Macron achou na visita de Donald Trump uma boa oportunidade para “recolocar” a França – à frente da Alemanha – num hipotético comando das operações europeias de relacionamento com a “América”. Um modo unilateral de revisitar, talvez, a História – a ocupação nazi-fascista, a França ocupando os territórios germânicos do Rhur. Complexa missão será sempre a denúncia do uso de lâmpadas fundidas na postura de quem – olhai os lírios do G19 – representa 85% do PIB mundial e 75% do comércio global. Trump hostilizou a França num dos momentos trágicos desta era do terrorismo “yiadista” na Europa. Criticou a política de segurança interna da França. Acusou os parceiros europeus da OTAN de “pagarem pouco” e beneficiarem da organização atlântica com vida cómoda e regalada. O multimilionário confessou-se deslumbrado – coisa demasiado recorrente – com o que viu do património monumental parisiense. Do conjunto de indefinições da visita presidencial norte-americana a França ficou a pairar, apenas, o exagero gestual – que fertilizou comentários na imprensa europeia e confundiu não poucos.
Adão e Eva permitiram-se o luxo da ausência durante a visita, de Estado, também, ao Reino Unido, dos soberanos da Coroa de Espanha. Interessante e clarificadora a prestação política, em Londres, de Felipe VI e a rainha Letizia, ao serviço da respectiva monarquia constitucional. Em pleno coração do “Brexit”, que o rei Felipe VI considerou não susceptível de fazer perigar as relações bilaterais. Em Londres, o rigor, os cuidados estéticos, os discursos, afinaram por um consistente diapasão de diplomacia morigeradora. Resultou interessante, deveras, observar como as “espadas de cetim” abordaram a histórica beligerância disputal em torno de Gibraltar, o “Rochedo”, “Jabal al-Tariq” (traduzido do árabe) – promontório de grande importância estratégico-militar a guarnecer o estreito oceânico que separa a África do continente europeu. A Espanha persiste na reivindicação de Gibraltar. Em Westminster, na sessão conjunta das câmaras de Lordes e dos Comuns, Felipe VI apelou à “determinação” como forma de “superar as diferenças” entre a Espanha e o Reino Unido. Disse acreditar numa “solução”, para Gibraltar, “satisfatória para todos”. E encareceu a mútua condição de “aliados estratégicos”, conceito que o jovem monarca espanhol tornou acolhedor para o resto da Europa. Pôde concluir-se que Felipe VI reiterou a posição assumida, em 1986, em Londres, por seu pai, Juan Carlos I, o primeiro monarca de Espanha a dirigir-se ao Parlamento britânico. Da “estética da narrativa” de Felipe VI constaram, até, alusões a Shakespeare e a Cervantes. E a isso não terá sido insensível lorde Norman Fowler, parlamentar britânico de corte clássico, nada influenciado pelos presságios “incendiários” de alguma imprensa do seu país. O “The Sun” chegara a admitir como possível uma “desfeita” – o abandono da sala em Westminster por “alguns” parlamentares quando a polémica questão de Gibraltar surgisse em cena. A câmara dos Lordes britânica data do século XIV. Várias gerações de políticos por ali passaram. Lorde Flower muito saberá do retinir dos sabres que esmalta a sangrenta luta supremacial e os conflitos matrimoniais na esfera palaciana anglohispânica. Numa altura em que o mundo vive prisioneiro de múltiplas incertezas e carente de veracidades comportamentais, achou cordato Norman Flower “temperar” com igual esmero a réplica ao monarca visitante. Admitiu, com placidez, a existência, entre o Reino Unido e a Espanha, de “interesses que nem sempre coincidem”. Gibraltar, frisou depois, “é um desses pontos de desacordo”, mas, argumentou Flower com perspicácia, “no meio das diferenças desenvolvemos” – Reino Unido e Espanha – “democracias nas quais prevalece o Estado de direito”.
Outra “estética”, pois, em Londres. Ninguém esperaria que ali se discutisse o não discutido em Paris – a lei do número, o rol tradicional das grandes reivindicações sem resposta, a ficção democrática, finalmente, a “subversão dos códigos essenciais da condição humana”, diriam Albert Libertad, Sébastien Faure, Ricardo Mella, cruzados da transparência – e avessos às ficções.
Do campo metafísico passamos para as coisas práticas cuja carnalidade reclama urgência