Revisitar o jornalismo dos anos 80
Coadas pela inexorável peneira do tempo chegam lembranças do nosso jornalismo do início dos anos oitenta quando, mesmo acossados pelas invasões dos carcamanos no sul do país, éramos obstinadamente todos resistentes. Reviver alguns momentos é o que pretendo nestas crónicas de reinício da publicação da coluna “Morro do Sombreiro” nas páginas do Jornal de Angola.
Enquanto trabalhava na Angop, ia fazendo uma “perninha” nas páginas de um semanário de grande circulação nacional chamado “Jornal Desportivo Militar”, afecto às Forças Armadas Populares, convidado pelo finado Ângelo Silva, que foi um dos maiores guardiões da selecção nacional e do Primeiro de Agosto. Num passe de magia comecei então a escrever no “Jotadê-éme” crónicas do campeonato da primeira divisão, nos memoráveis anos em que desfilavam na galeria da bola treinadores carismáticos como Mário Imbelonni com a sua voz rouca, Nicola Berardinelli e Chico Ventura. De árbitros como o tio Mário Amzalack e a sua inseparável ligadura elástica na coxa direita, Dionísio e Manita. De grandes jogadores como Ndunguidi, Arménio com a sua cabeleira ruiva, Diamingana, Maluka e outros.
Cheguei a ser um credenciado cronista de futebol, embora até hoje continuem desconhecidas as causas de tal cataclismo de proporções bíblicas e muito menos por quantas vagas de seiscentos diabos cada terei sido mordido. Talvez a reminiscência de algum código atávico do tempo quando os polacos jogavam futebol em desenhos animados.
Naquelas alturas de pouco pão e muita luta, vivíamos de sentir o pulsar da seiva no sincero bom dia camarada e os lombuchas não conseguiam espaço de festejarem despudoradamente os golos marcados de penáltis roubados ou obtidos em escandalosos foras e jogo e por cima com o abuso e atrevimento de virem na TV festejar, deixando-nos aquele amargo travo da impotência de nada podermos fazer para prevalecerem as regras do jogo.
Para melhor situar os leitores no tempo a que aludem os factos, as pesadas chuteiras de traves acabavam de ser aposentadas nas prateleiras dos balneários e em seu lugar chegaram lindas sapatilhas de pitões descartáveis. Mas continuava a ser o pelado de terra vermelha a arena de eleição onde os gladiadores do futebol resolviam os grandes trumunos.
Em dada ocasião visitei as sedes do que na revolucionária terminologia oficial se designavam de meios-de-difusãomassiva. Encontrei as redacções a regurgitarem com o matraquear das máquinas de escrever, que mais pareciam dançarinas de sapateado gingando às mãos de dúzia e meia de talentosos escribas, camaradas de porte esbelto e fiéis exemplares da magreza reinante na banda. Quase todos fumavam e uns tantos eram inveterados bangões, vestidos de camisas floridas cintadas ao corpo e farta carapinha alinhada esmeradamente no topo da testa com “pente-de-pau”.
Os jornalistas escreviam em “linguados” de papel de 25 linhas a um espaço e meio e, na maior parte das vezes, não havia sequer químico para deixar os duplicados no arquivo. Contudo, o pessoal estava positivamente se marimbando para as dificuldades que, por sinal, eram de toda a índole. Os “linguados” da Angop eram brancos, ao passo que os do Jornal de Angola eram meio amarelados e feitos na própria gráfica. O papel ostentava a numeração na margem esquerda e o pessoal tinha de escrever naquele alinhamento, o que exigia uma certa prática.
Nas redacções da Angop, do Jornal de Angola, da Rádio Nacional, da Revista Novembro e do J.D.M. estavam entrincheirados os melhores jornalistas daquela intrépida geração, uma mescla de sobreviventes do jornalismo do tempo colonial juntos e misturados com os imberbes repórteres e redactores da resistência popular generalizada.
Para melhor situar os leitores no tempo a que aludem os factos, as pesadas chuteiras de traves acabavam de ser aposentadas nas prateleiras dos balneários e em seu lugar chegaram lindas sapatilhas de pitões descartáveis