Donald Trump explica na ONU o destino da humanidade
Exibindo na lapela o estrondeante orçamento de guerra de 700 mil milhões de dólares, o presidente norte-americano proferiu agora em Nova Iorque o seu primeiro discurso nas Nações Unidas – oratória salpicada de referências à “criação de um mundo pacífico para o bem dos cidadãos”. Objectivo que, segundo Donald Trump, impõe levar à prática a “derrota” dos “inimigos da Humanidade”.
Continuando a explicar-nos, categórico, o Destino da Humanidade, Trump sentiu-se também capacitado para falar de “terrorismo” e do “regresso dos refugiados aos seus países”. Um regresso que, por exemplo, nos casos de Mosul e Alepo, exigiria investimentos que Trump recusaria com palavras e gestos hostis. Como nesta sua aula magistral sobre o Destino da Humanidade “um mundo pacífico para o bem dos cidadãos” seria de todo imprescindível, Trump usou expressões como “angústia, pobreza e fracasso” quando se lembrou do Irão, Coreia do Norte, Cuba e a Venezuela. Daí a pacífica receita: “Há que derrotar os inimigos da Humanidade”. (Poucas horas antes, um alto funcionário do Irão havia declarado: “Dispomos de provas do apoio norteamericano aos terroristas do Daesh/Estado Islâmico”).
Animado pela razoável comodidade do cadeirão em que se sentava, Trump dissertou também sobre o “socialismo”. Países como Cuba e a Venezuela foram de novo alvejados com ameaças. Vistas as coisas com a conveniente ponderação, Trump estava ali, nas Nações Unidas, a patrocinar uma aula magistral sobre o “Destino Manifesto”. No convencimento, podemos crê-lo, de que assim explicava a gregos e troianos o Destino da Humanidade. Entender a sua narrativa corresponde, sem margem para quaisquer dubiedades, à classificação ideológica de parcelas do Médio Oriente e da América Latina.
Antes da sucessão de discursos na ONU aconteceram, em simultâneo, coisas extraordinárias. A Arábia Saudita oferecendo-se para intervir na Síria com tropas terrestres (!!!). A Casa Branca autorizando a Polícia norte-americana a comprar equipamentos militares. Donald Trump derrubando um programa de apoio aos jovens imigrantes “irregulares”, cerca de 800 mil, por enquanto reféns da burocracia política interna. Sondagens no país da senhora Merkel sugerindo que os nazi-fascistas do partido Alternativa para a Alemanha (AfD) chegarão, pela primeira vez, ao Parlamento germânico. (O líder nazi-fascista, Alexander Gauland, homem de mais de 60 anos, sabe o que “quer”. Exige o reconhecimento nacional das “obras notáveis” do exército hitleriano durante a II Guerra Mundial). E uma ignomínia mais: cerca de 400 mil pessoas da etnia rohingya açoitadas, na Birmânia, por uma avalancha persecutória de dimensões catastróficas.
Nas Nações Unidas, Trump discursou como se estivéssemos todos em 1823, 1845 ou 1874. Na maior das descontracções, usou a apologia do “Discurso Manifesto” como forma de alargar a todo o planeta a esfera de acção preponderante e dominadora no Continente Americano. Estes arrebatamentos – que julgávamos erradicados para sempre – datam da época das grandes penúrias na Irlanda e na Escócia geradoras
Trump cultivou a solenidade nas assertivas, esmerou-se mesmo na pose eucarística quando o seu fraseado desferia ameaças a torto e a direito. Filosofou sobre a malvadez infernal do socialismo – como se os seus negócios privados dele fizessem um participante moral activo do esforço transformador destes cenários mundiais
da fuga para a “América”. Em 1823, James Monroe abria a torneira dos postulados supremaciais. E em 1874 um influente colunista, John L. O’Sullivan, usava a frase “Destino Manifesto” para defender o roubo e anexação do Texas e do Oregão, em prejuízo do México. (A companhia norte-americana United Fruit faria do “Destino Manifesto” a alavanca das invasões subjugantes, para sempre, da América Central. Guatemala e Honduras, ditaduras sangrentas, navegam à custa das submissões, ainda, ao “Destino Manifesto”).
Trump chegou ao poder impreparado para o confronto com realidades muito diferentes – mas animado por uma boa escolta de regimes do Médio Oriente e das Américas centro e sulamericanas. Percebeu-se, de resto, na sessão da ONU, que os presidentes do Brasil e da Colômbia, fruindo o conforto da presença de Trump, teriam mato desbravado para a ostentação da impunidade em que vivem. Daí a afoiteza nos ataques à “Venezuela do regime de Maduro”. Lancinantes, pelo despudor, as assertivas dos dois sul-americanos. O da Colômbia falou de avanços qualitativos na saúde, na qualidade de vida, algo assombroso porque a realidade em questão se traduz num dos países mais desiguais do planeta. São conhecidos da ONU os índices colombianos da desnutrição e da mortalidade infantis. Também os da desvergonha do narcotráfico. Mas, estando em causa os oito milhões de venezuelanos que elegeram a sua Assembleia Constituinte, seria interessante lembrar a Trump e seus escudeiros sul-americanos os dois milhões de colombianos que encontraram refúgio na Venezuela “chavista” e “madurista”, muitos dos quais estudantes que beneficiam dos 76 por cento de ensino gratuito e de qualidade garantidos por Caracas (da primária à universidade…).
Trump cultivou a solenidade nas assertivas, esmerou-se mesmo na pose eucarística quando o seu fraseado desferia ameaças a torto e a direito. Filosofou sobre a malvadez infernal do socialismo – como se os seus negócios privados dele fizessem um participante moral activo do esforço transformador destes cenários mundiais: 40 mil crianças que morrem, diariamente, 115 milhões de entes sem acesso à educação, 854 milhões de adultos que não sabem ler nem escrever, 100 milhões privados de tecto.
Em consonância com este nível cultural de previsão do Destino da Humanidade, o redobrar de punições aos direitos económicos de Cuba e da Venezuela contou com a simpatia obediente dos próceres da Argentina, do Brasil, da Colômbia. E António Guterres, o comedido secretário-geral, incitado pela mais-valia que é sem dúvida o conhecimento antecipado do Destino da Humanidade, limitou-se a explicar que as Nações Unidas são terra lavrada da resignação. Ele saberá que a “jorna” esclavagista continua, em Portugal, como na época salazarenta das searas de fogo alentejanas: Passos Coelho I, “O Austero”, “normalizou” no Campo Grande, em Lisboa, a “apanha” de desempregados – mão-de-obra baratucha metida em carrinhas que, com desenvoltura “castiça”, rumam à conquista do belo Destino da Humanidade.