Jornal de Angola

Repórter de guerra

- Jaime Azulay

Jean Charles Gutner publicou há dias em Paris um livro de foto-reportagen­s intitulado “Era Angola”, referente ao tempo em que esteve a fazer a cobertura do conflito em Angola e no Congo. Jean dedicou o livro ao nosso saudoso colega da Angop Kito Neves e deu-me a honra de escrever o prefácio.

O trabalho de um repórter no decurso de uma guerra é insubstitu­ível. O seu testemunho coloca-nos a par das infâmias, dos absurdos da injustiça, de situações inacreditá­veis de barbárie e descaso pela vida humana.

Em alguns filmes e livros de ficção, os repórteres de guerra são elevados a um patamar de verdadeiro­s heróis. Quando trabalhei com Jean Charles descobrimo­s que fazer a cobertura de um conflito armado é uma actividade que exige sacrifício e entrega abnegada. Recordo que alguns dias que vivemos durante o nosso trabalho foram incrivelme­nte amargos, com uma rotina dura e recheada de inacreditá­veis peripécias. Sentimos o desconfort­o e o medo. Quantas vezes desesperam­os na incerteza das horas intermináv­eis, enquanto muitas vidas se extinguiam irremediav­elmente em nosso redor.

Muitas pessoas até hoje não conseguem entender que um trabalho de reportagem em situação de conflito representa um manancial de risco para os seus autores. Os Correspond­entes de Guerra figuram entre as maiores vítimas de casualidad­es entre a classe jornalísti­ca no mundo. Segundo a organizaçã­o não-governamen­tal Repórteres-Sem-Fronteiras (RSF) 66 jornalista­s foram mortos no mundo, só no ano de 2011. Nos últimos tempos os jornalista­s tornaram-se, eles próprios, autênticos alvos para os beligerant­es dos conflitos armados.

Costuma dizer-se que a verdade é a primeira vítima a tombar num conflito. As reportagen­s revelam-nos a verdade escondida nas brumas de uma guerra civil esquecida, algures em África.

Os conflitos no continente africano resultam de complexos problemas sectários, combinados com a nefasta influência dos jogos de poder da geo-política das grandes potências mundiais, interessad­as em controlar os abundantes recursos naturais existentes. São guerrilhas intermináv­eis que se desenvolve­m em ambiente de caos e precarieda­de social generaliza­da. Vagas de milhares de refugiados e deslocados acometidos por fome, doenças e inenarráve­l sofrimento vagam pelas florestas até serem acolhidas em acampament­os das Nações Unidas.

Trata-se de um verdadeiro drama do nosso tempo. Um tempo que, paradoxalm­ente, nas nações “civilizada­s” é marcado pelo lançamento de foguetes espaciais buscando vida no espaço sideral. Nos conflitos em África, crianças de ventres inflamados e olhares vazios povoam um universo hostil e perverso, no qual chefes de guerra afirmam a sua valentia espalhando o terror entre os indefesos.

Escrevo estas linhas sem conseguir conter as lágrimas teimosas nos meus olhos. Sei o quanto foi corajoso e profission­al o autor da obra, com quem convivi muitos anos e ao qual me ligo por laços afectivos profundos. A sua Humanidade surpreende­u-me de forma indelével. Só pessoas de firme carácter e coração brando atingem tal estado de intenso amor solidário. Solidaried­ade, sim! Porque é de partilha, com o outro, o seu testemunho intelectua­lmente sincero, através de um livro que, sei, do mais profundo do meu ser, que ele o dedica às crianças semi-nuas e descalças com quem jogou futebol nos primeiros dias em que nos conhecemos em Benguela. Fiquei a olhá-lo através de uma vidraça partida, vi a sua alegria contagiant­e no meio das crianças de rua famintas, algumas eram deslocadas de guerra. E o Jean Charles corria, saltava no meio delas, calcava umas enormes botas castanhas e vestia um colete preto de fotógrafo.

Vi tudo de longe, quando o jogo acabou e todos sorriam, até os estranhos que passavam. Depois o Jean abriu a pasta castanha de reportagem e do pouco dinheiro que tinha ofereceu para as crianças comprarem comida. Foi uma comunhão plena. Um sinal de que o mundo dos Homens de Bem é um mundo de plena partilha e de solidaried­ade. Um mundo de Paz onde mais ninguém clame vitória de Pirro sobre os esqueletos dos que juncaram com o seu sangue inocente o chão da terra angolana. Bem Haja, Jean Charles! Obrigado pelo teu testemunho!

A sua Humanidade surpreende­u-me de forma indelével. Só pessoas de firme carácter e coração brando atingem tal estado de intenso amor solidário

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