Do jornalismo “fardado” ao jornalismo de fato e gravata
E eu sinto muito orgulho de ter pertencido àquela geração, porque ajudamos a “desbravar” o caminho que criou as condições para que hoje pudéssemos fazer jornalismo de “fato e gravata”
Quando me deparei com o título “Repórter de guerra” na crónica do Jaime Azulay, publicada na nossa edição de 5 do mês em curso, imaginei que fosse encontrar, no texto, aspectos narrados por este experiente e competente jornalista, que foi um dos colegas que mais fez a cobertura de operações militares durante o longo e devastador conflito armado que Angola e o seu povo conheceram nos últimos 30 anos.
Confesso que senti alguma frustração ao aperceber-me de que o repórter quase não falou das muitas e marcantes histórias que viveu naqueles anos que, lado a lado com os valorosos combatentes das FAPLA, ia narrando e divulgando para a opinião pública nacional e internacional o que se estava a passar no teatro das operações militares em várias frentes de combate, um pouco por esta imensa Angola.
Sinceramente, pensava encontrar, no texto, os momentos que ele teve o privilégio de privar com o destemido general João Baptista de Matos (que muitos de nós não tivemos, apesar de também termos feito algumas reportagens de guerra). Soube há pouco, embora ele tivesse trazido a “lume” alguns aspectos não menos importantes do nosso conflito armado.
Mas penso que o Jaime está a preparar, se é que ainda não tem já escrita ou esboçada no seu subconsciente, uma crónica daquelas que ele sabe muito bem escrever, em que nos vai dar a conhecer alguns pormenores das peripécias e também momentos bons e eventualmente menos agradáveis, mas marcantes, que terá passado ao lado do invulgar chefe militar que foi João de Matos. Eu esperava que o Jaime falasse também da grande componente humanista do general que acaba de deixarnos, que contrastava com a sua condição de comandante militar, e da sua componente ecológica, que muito contribuiu para a redescoberta e protecção da Palanca Negra Gigante, que estava em grave risco de extinção, bem como do repovoamento de parte da nossa fauna, por meio da sua Fundação Kiçama.
São aspectos mutifacéticos do herói nacional, de trato fácil e sempre com um sorriso no rosto, mesmo em situações difíceis, que Angola e o mundo precisam de saber.
É também desta forma que estaremos a contribuir para o enriquecimento da história de Angola, porque se não formos nós, que acompanhamos e fomos partipantes directos e indirectos de parte das epopeias gloriosas deste país e deste povo a fazê-lo, ninguém fará por nós. Assim estaríamos a silenciar ou a omitir parte da nossa História recente, adornada com ouro, mas também com sangue de valorosos filhos desta terra que nos foi deixada por Ngola Kiluanje Kia Samba. De entre milhares de heróis anónimos, incluem-se os jornalistas, muitos dos quais perderam também a vida durante o nosso conflito armado. Se não foi por disparos de metralhadora, ou de canhão, terá sido por accionamento de minas ou por queda de aeronaves.
O Jaime não terá corrido muito este risco (de cair com um avião), porque grande parte das reportagens de guerra que fazia eram por via terrestre onde havia também o perigo de accionar uma mina anti-tanque, ou mesmo anti-pessoal, mas alguns de nós viajávamos para as frentes de combate de avião ou de helicóptero. Num momento em que os pilotos navegavam o mais alto que os aparelhos pudessem atingir e só aterravam, em espiral, quando estivessem sobre, a pista para evitar que as aeronaves fossem abatidas.
Eu tenho quase a certeza de que o Jaime Azulay vai escrever um texto em homenagem ao general João de Matos porque, pelos seus feitos em prol da conquista e da preservação da paz em Angola, ele merece o nosso reconhecimento e admiração e uma das formas de reconhecer a sua grandeza e a sua elevada estatura militar, é falarmos dele, dos seus feitos, para que as presentes e futuras gerações saibam o quanto ele fez por este país.
Neste momento, vêm-me à memória verdadeiros heróis do jornalismo angolano como tu, Jaime, eu, o Abel Abrãao, Faria Horácio, Paulo Cahilo, Nelson Pedro, Florentino Setila, Luís Domingos, Gonçalves Hianjica, Nguxi dos Santos, e os irmãos Henriques, que faziam o programa “Opção”, o Luís Fernando, o Paulino Damião “50”, os falecidos Pedro Salvador e Almeida Totas, o Francisco Bernardo e tantos outros, que não mencionei aqui por não me recordar já dos seus nomes. Desculpem-me. Não foi de propósito, mas porque a minha memória, que não é de elefante, perdeu alguma capacidade de “armazenamento”.
Muitos de nós contribuímos para a elevação do moral das tropas, para a elevação do seu espírito combativo, quando com elas partilhamos as mesmas trincheiras, jogamos cartas com elas, contávamos anedotas nos poucos momentos de trégua que se observavam, comíamos da sua ração fria, apanhávamos chuva juntos e festejamos conjuntamente cada vitória no campo militar.
E o programa “Opção”, da então Televisão Popular de Angola, na altura, teve também este papel de informar a população com imagens reais sobre os que se estava a passar nas frentes de combate.
Não gosto muito de me lembrar dessas coisas, mas às vezes as circunstâncias obrigam-nos a fazer recurso a essas memórias daquele tempo em que se fazia jornalismo com farda militar e metralhadora a tira-colo.
E eu sinto muito orgulho de ter pertencido àquela geração, porque ajudamos a “desbravar” o caminho que criou as condições para que hoje pudéssemos fazer jornalismo de “fato e gravata”. Colocamos, assim, o nosso grão de areia nos alicerces e nos pilares para a construção do edifício que é hoje o jornalismo angolano responsável, sério e credível. Não quero com isso reivindicar honras, porque estas pertencem aos generais.