Estórias de ontem e de hoje
O mar da Ilha de Luanda continua igual na diferença que sempre o distinguiu, o da a contra-costa, de onde vêm as calembas, o da baía, meigo, enfeitado com reflexos do néon dos reclames luminosos.
O mar da Ilha do Cabo permanece o mesmo. A dividi-lo, a estrada, agora tão diferente. Que já foi linha de areia, onde as viaturas ficavam enterradas e os condutores desesperados. Depois, ainda no período colonial, passou a ser asfaltada e a ter rotundas. Tão perigosas, como agora.
Já naquele tempo havia restaurantes e esplanadas nos dois lados do mar. Principalmente, no da contra-costa. O outro, parecia reservado a habitação e casas de praia . Algumas de tijolo e cimento. Em maior número, de madeira. Estas, assentes em pilares. Idênticos às que havia dos Coqueiros à Rua do Lima ou à “avenida do Hospital" Maria Pia.
A esmagadora maioria das casas da Ilha - a partir da zona adjacente à floresta - era de colmo. Habitadas pelos axiluandas.
Os pescadores vestiam calções e por cima deles um pano - até meios das pernas, atado na cintura - aos quadrados brancos e azuis ou vermelhos. Que arregaçavam quando entravam na água, subiam e desciam dos dongos - esculpidos em mafumeiras - e coqueiros.
Os pescadores andavam quase sempre de tronco despedido. Somente, quando saíam da Ilha, o cobriam com camisa de manga curta, julgo que riscado, ou camisola. Como sucedia com os pés, sempre descalços. Quando vinham à cidade, sobretudo para vender ostras ou arranjar paus para construir dongos, calçavam quedes. Eram verdadeiras estátuas. Esculpidas , também com a ajuda do ximbicamento, o puxar das redes e embarcações. Mas, igualmente pelo vento salgado. Ao passarem, quase sempre em grupo, davam nas vistas. Pela forma de vestir, imponência, fama de bons lutadores. Mestres nas artes da bassula, prega, capanga. Não admitiam afrontas, nem viravam a cara a uma briga, mesmo se o adversário se chamava calemba, o mais traiçoeiro e feroz dos inimigos.
Depois, foi o que todos sabem. Perante a irreversibilidade da Independência Nacional - até depois dela proclamada e reconhecida por vários Governos -, dos angolanos serem, finalmente, donos do seu próprio destino, os inimigos de sempre redobraram esforços e refinaram crueldades. O País foi invadido por mercenários de todas as origens, que semearam minas, mortes, luto, sangue. As vítimas sobreviventes de várias províncias encontraram refúgio na capital. Milhares delas acolheram-se na Ilha do Cabo. Os axiluandas, habituados às agruras trazidas pelas calembas e falta de peixe, foram solidários e receberam-nos. Como Luanda inteira.
A Ilha, de repente, passou a ter novos moradores, muitos dos quais viam pela primeira vez o mar. Que construíram ximbecos com o que estava “mais à mão” - chapas, papelões, plásticos - e tiveram de ganhar o sustento. Camponeses, carpinteiros, estudantes tornaram-se pescadores. Quitandeiras de berma de estrada, zungueiras. Trouxeram dialectos, cantigas, comidas, vestimentas, missossos diferentes. Assimilaram outros. Porventura, cruzaram famílias.
Os pescadores da Ilha de Luanda já não têm pano amarrado à cintura. Usam calças de ganga. Sequer andam de tronco nu, quanto mais descalços. Trocaram os dongos por chatas. Quase todas a motor, o que dispensa ximbicamento. Provavelmente, não sabem subir a coqueiros. E se vêm à cidade passam despercebidos entre a população heterogénea que caracteriza as grandes metrópoles.
Os antigos pescadores da Ilha de Luanda são agora imagem difusa. Como hão-de ser, dentro de uns anos, os actuais. Angola dispõe agora, no Namibe, de uma Academia destinado a quem o queira ser. Com conhecimentos científicos.
A Ilha do Cabo já não tem dongos. Nem casas de colmo habitadas pelos axiluandas de corpos esculpidos pelo ximbicamento dos dongos. Modernizou-se. Angola já tem, no Namibe, uma Academia que ensina, com bases científicas, artes da pesca