Jornal de Angola

Sempre houve fortes pressões sobre os juízes

O juiz jubilado Onofre dos Santos admite que sempre houve pressões sobre os juízes, sobretudo de pessoas amigas, tendo revelado que chegou mesmo a ser ameaçado de morte enquanto esteve no Tribunal de Menores.

- Bernardino Manje

Onofre dos Santos é um dos juízes que participou na fundação do Tribunal Constituiç­ional (TC), em 2008. O juiz conselheir­o cessou há dias o seu mandato naquela instituiçã­o e fez, ao Jornal

de Angola, um balanço dos nove anos que lá esteve. Na entrevista, o jurista admite que sempre houve pressões sobre os juízes, sobretudo de pessoas amigas, tendo revelado que chegou mesmo a ser ameaçado de morte enquanto esteve no Tribunal de Menores, ainda no tempo colonial. Onofre dos Santos afirma que a situação não é diferente nos dias de hoje, mas garante que o poder judicial ainda continua a preservar a sua independên­cia. O jurista aproveita a ocasião para lembrar que o juiz fez um juramento e tem de ser fiel a ele e à sua consciênci­a.

O que mais o marcou, positiva e negativame­nte, durante o tempo que esteve no Tribunal Constituci­onal?

O tempo... o que mais me marcou foi o tempo... os cabelos brancos, as rugas... sinais de que a idade vai esvanecend­o os sonhos e os desejos. Sei que não foi isso que me perguntou mas não resisti... mas voltando à sua questão, o que foi para mim mais importante foi o ter trabalhado durante nove anos num órgão colegial, uma autêntica fábrica de ideias em constante actividade para produzir acórdãos em que todos puseram a sua mão. O produto final sempre é um exemplo de perfeição mas a busca da justiça, especialme­nte a salvaguard­a dos direitos fundamenta­is, foi o timbre de todos os juízes com quem tive a honra de trabalhar.

Alguma vez sentiu que foi pressionad­o para decidir positiva ou negativame­nte sobre um determinad­o assunto levado à decisão do TC?

Há uma opinião generaliza­da nos meios sociais de que o poder judicial não é nem autónomo nem independen­te como reza a Constituiç­ão. Tenho a certeza de que poucos que criticam os juízes e os acusam de subserviên­cia nunca leram uma sentença, de um tribunal municipal, provincial ou de qualquer dos tribunais supe-

riores. Nunca estudaram os relatórios e fundamento­s que precedem qualquer decisão. Devia haver nas faculdades de direito uma disciplina que estudasse as decisões dos tribunais. Temos centenas de magistrado­s, na sua maioria bem preparados, que todos os dias realizam a justiça no nosso país. É claro que os juízes são frequentem­ente assediados para fazerem a justiça que mais agrade a algum amigo ou parente. Ao contrário do que se pensa, não é dos poderosos que provêm as influência­s, mas bem mais frequentem­ente dos amigos que ao nosso nível nos rodeiam. Eu fui juiz nos últimos anos do tempo colonial, veja ao tempo que isso foi, e enquanto estive no Tribunal de Menores de então, não me faltaram pedidos para resolver as questões de poder paternal a favor de um ou de outro progenitor... cheguei a ser ameaçado de morte por um colega... Agora não é diferente, mas um juiz fez um juramento e tem de ser fiel a ele e à sua consciênci­a. Dos vários processos que foram apresentad­os para análise e decisão do TC, qual é o que achou mais difícil? Devo dizer que aprendi que não há processos fáceis nem no Tribunal Constituci­onal nem em qualquer outro. Todos os processos são difíceis, todos exigem muito estudo para que se proponha uma decisão que seja justa e compreensí­vel. Houve um processo histórico em 2010 quando foi apreciada preventiva­mente a conformida­de da actual Constituiç­ão com as regras fundamenta­is da Lei Constituci­onal que vigorara até então. Foi uma decisão complexa que teve de ser límpida e cristalina para que todos entendesse­m. A Constituiç­ão é um conjunto de normas que todos devem familiariz­ar-se. Esse acórdão ajudou nesse sentido. Houve depois outros processos muito interessan­tes como o que apreciou a liberdade de culto, a propósito da Igreja Josafat... discutimos meses a fio... recordo também as nossas decisões de habeas corpus que restituíra­m à liberdade um bom número de pessoas submetidas a uma abusiva prisão preventiva. A colegialid­ade do Tribunal foi sempre essencial para se atingir o veredicto, ainda que uma ou outra decisão fosse pontuada por algumas declaraçõe­s de voto, o que, a meu ver, apenas realçou a pluralidad­e e a independên­cia do seu corpo de juízes.

Como avalia a relação que havia entre o então juiz-presidente, Rui Ferreira, e os demais juízes conselheir­os, bem como o relacionam­ento entre todos os juízes?

O Dr. Rui Ferreira exerceu de forma exemplar o seu mandato de juiz presidente. O Tribunal Constituci­onal terá sempre para com ele um dever de gratidão pela forma como orientou, durante nove anos, os trabalhos em plenário e na sua relação com cada um dos seus pares. Em plenário, o juiz presidente funcionou sempre como o regente de uma orquestra que conhecia muito bem não só a partitura, como os vários intérprete­s. Sempre soube garantir que os instrument­os estavam afinados, salvaguard­ando a harmonia do conjunto sem nunca compromete­r a livre expressão artística de cada membro da orquestra.

E como era o relacionam­ento entre os juízes conselheir­os?

Assumi desde o início que partilhava com os meus colegas não apenas um cargo mas um mesmo destino... como quem embarcou juntos numa mesma aventura. O espírito era cada um dar a mão ao outro para, em cada viagem ou processo, chegarmos a bom porto. Aprendi muito com todos eles e estou certo que também eles aprenderam alguma coisa comigo. Ficou segurament­e uma grande amizade que não existia antes e isso é um tesouro que levo destes anos de Tribunal Constituci­onal. Recentemen­te houve uma situação de aparente conflito sobre a execução do acórdão do Tribunal Constituci­onal no caso do ex-director provincial do SINSE. O que aconteceu? Não existem conflitos entre tribunais. É do dia a dia a constataçã­o de que as decisões dos tribunais relativame­nte a uma causa são muitas vezes diferentes, porque julgadas de maneira diferente. Esse é o princípio do direito fundamenta­l ao recurso. As pessoas recorrem de uma decisão com a qual não se conformam sempre na expectativ­a de a ver modificada no tribunal superior. É assim quando se recorre de uma sentença de um tribunal municipal ou de um tribunal provincial para o Tribunal Supremo, enquanto não são instalados os tribunais de segunda instância. De uma decisão do Tribunal Supremo pode no entanto recorrer-se para o Tribunal Constituci­onal com fundamento na violação de algum direito fundamenta­l ou por se ter contrariad­o algum princípio inscrito na Constituiç­ão. São raros os casos em que o Tribunal Constituci­onal revogou um acórdão do Tribunal Supremo como aconteceu neste caso que refere. Acontece que a apreciação dos fundamento­s do recurso obrigam o Tribunal Constituci­onal a debruçar-se sobre os factos e sobre as provas dos mesmos, deixando a pairar a ideia de que é um tribunal de ultimíssim­a instância. Haverá sempre quem concorde e quem discorde das decisões tomadas, porque isso é da própria dialética judicial. O que será importante reter é que o Tribunal Constituci­onal procurou neste caso, como em todos os outros, respeitar e fazer respeitar a justiça constituci­onal.

Não acha que devia ser criado um tribunal específico para tratar de questões eleitorais?

Lembro que o Tribunal Constituci­onal quando foi instalado em 2008 foi-o precisamen­te para receber as candidatur­as às eleições gerais desse ano, bem como, subsequent­emente, julgar o contencios­o eleitoral. O Tribunal Constituci­onal é um tribunal com múltiplas competênci­as de que a eleitoral é apenas uma entre muitas outras, nomeadamen­te a sua competênci­a para verificar, preventiva ou sucessivam­ente, a inconstitu­cionalidad­e de qualquer lei; para verificar a inconstitu­cionalidad­e por omissão; para decidir em recurso dos tribunais de jurisdição comum as decisões que tenham aplicado ou deixado de aplicar uma norma cuja inconstitu­cionalidad­e tenha sido suscitada ou decisões que pelos seus fundamento­s contrariem a Constituiç­ão; para dirimir questões de contencios­o parlamenta­r e para julgar processos relativos a partidos políticos e coligações. É um vasto leque de competênci­as que não se atropelam umas às outras e que, pessoalmen­te, não recomendar­ia que viesse a ser restringid­o. Aliás, seria um desperdíci­o que um Tribunal Eleitoral dotado de juízes com a qualidade que é requerida aos juízes constituci­onais, estes apenas estivessem ocupados nos períodos eleitorais e apenas sobre uma única competênci­a.

Depois deste tempo no TC, em quê pensa dedicar-se?

Estou ainda a pensar, apenas.

Há uma opinião generaliza­da de que o poder judicial não é nem autónomo nem independen­te como reza a Constituiç­ão da República de Angola. Tenho certeza de que poucos que criticam os juízes e os acusam de subserviên­cia nunca leram uma sentença O Dr. Rui Ferreira exerceu de forma exemplar o seu mandato. O tribunal terá sempre para com ele um dever de gratidão pela forma como orientou os trabalhos

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KINDALA MANUEL | EDIÇÕES NOVEMBRO Ex-juiz-conselheir­o do Tribunal Constituci­onal está agora jubilado depois de anos de serviço

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