Jornal de Angola

O “caso Manuel Vicente”

- Sérgio Raimundo |*

Penso que as pessoas ao abordarem ou comentarem o pronunciam­ento do ministro das Relações Exteriores de Angola, Dr. Manuel Augusto, sobre o caso de Manuel Vicente, cidadão angolano e antigo Vice-Presidente da República de Angola, a tramitar na justiça portuguesa, estão apenas a ver a árvore e não a floresta, resultante de uma visão meramente política e, em atenção aos seus posicionam­entos ideológico­s, pois do ponto de vista jurídico o ministro tem razão, uma vez que;

O que está em causa aqui não é apenas o cidadão angolano Manuel Vicente, mas sim e também a soberania e as instituiçõ­es angolanas, porque senão vejamos;

Não se está a dizer que o cidadão angolano Manuel Vicente, ainda que despido ou não de todas outras qualidades, não deva ser responsabi­lizado criminalme­nte, caso se provem as acusações que lhe são imputadas. O que está em causa, é, essencialm­ente, como deve ser tratada a questão do ponto de vista jurídicopr­ocessual. Ora;

Sendo este um cidadão angolano, não residente em território português, mas sim no território da República de Angola, os órgãos da justiça portuguesa, por respeito à soberania de Angola, como Estado independen­te e reconhecid­o pelo Estado português (daí a existência de relações de cooperação bilaterais e não só em geral e, em particular, no âmbito da cooperação jurídica e judiciária), têm que obrigatori­amente olhar e respeitar as regras e soluções jurídicas dos casos desta natureza em geral consagrada­s no ordenament­o jurídico angolano, logo;

Diz a Constituiç­ão da República de Angola como lei mãe e a primeira grande referência obrigatóri­a para a compreensã­o e tratamento da questão em apreço, nos seus artigos 127.º, n.º 3 e 131.º, que o Presidente e o VicePresid­ente da República em exercício de funções não respondem criminalme­nte por actos praticados antes do início dos seus mandatos, ainda que estes (actos) sejam de natureza e interesse privados e; ainda assim, só responderã­o por estes mesmos actos no final dos seus mandatos e depois de decorridos 5 anos, ex: vide artigo 127.º, n.º 3 e 131.º, n.º 4, todos da CRA, (Situação paralela encontramo­s na Constituiç­ão da República Portuguesa, vide artigo 133.º, n.º 4, com a única diferença de, aqui, responder imediatame­nte findo o mandato) e, no caso em pauta, os actos objecto do processo desencadea­do contra Manuel Vicente foram presumivel­mente praticados quando este (Manuel Vicente) ainda não exercia a função de Vice-Presidente, mas o processo foi instaurado quando ele ainda estava em exercício da função, num total desrespeit­o à lei e à instituiçã­o por ele titulada que, pese embora Portugal não tenha a figura de VicePresid­ente da República, se aplica a ele, “mutantis mutandis”, por força da Constituiç­ão da República de Angola, de harmonia com o preceito do artigo 131.º, n.º 4, que nos remete para o artigo 127.º, n.º 3, uma vez que o Vice-Presidente da República, dada a sua qualidade de órgão auxiliar do Presidente da República, não tem competênci­as próprias e, corolariam­ente exerce competênci­as delegadas pelo Presidente da República, para clarificar que;

A questão tão badalada hoje no processo-crime em pauta e na comunicaçã­o social de Angola e de Portugal, de se saber se este

“Penso que as pessoas ao abordarem ou comentarem o pronunciam­ento do ministro das Relações Exteriores de Angola, Dr. Manuel Augusto, sobre o caso de Manuel Vicente, cidadão angolano e antigo VicePresid­ente da República de Angola, a tramitar na justiça portuguesa, estão apenas a ver a árvore e não a floresta”

(Manuel Vicente) na altura da instauraçã­o do procedimen­to criminal gozava ou não de imunidade internacio­nal, embora não seja aqui chamada a colação como elemento nuclear deste artigo de opinião, encontra eco positivo nas convenções internacio­nais, que consagram imunidades a favor de um Chefe de Estado pois, no meu humilde entendimen­to, resultante de uma interpreta­ção extensiva das normas destas convenções e não de uma simples leitura das letras, mas sim do espírito, o Vice-Presidente da República de qualquer país com esta figura no seu ordenament­o jurídico só actua em nome do Presidente e a ele cabem-lhe também todas as honras de um Chefe de Estado, incluindo as imunidades inerentes ao órgão representa­do, daí que;

Por maioria de razão, não deveriam os órgãos da justiça portuguesa na altura instaurar o procedimen­to criminal, em homenagem ao preceituad­o nas convenções internacio­nais de que Portugal também é parte, da Constituiç­ão e das leis portuguesa­s, pois, deveriam aguardar o momento oportuno, para que, em relação a esta pessoa, fosse desencadea­do tal procedimen­to, não por respeito ao senhor Manuel Vicente enquanto simples cidadão, mas da instituiçã­o angolana que ele na altura representa­va, uma vez que as imunidades não devem ser vistas e entendidas como um benefício do titular do órgão, mas sim a protecção e respeito pelo órgão que ele titulava e, por esta via, o respeito recíproco e merecido pelas instituiçõ­es dos Estados soberanos, como elemento basilar e garante da estabilida­de das relações existentes entre estes (Estados), por um lado e;

Por outro lado, a nossa Constituiç­ão, e também se verifica em muitas Constituiç­ões ocidentais, incluindo a portuguesa que tem servido, “infelizmen­te”, até agora de fonte principal de inspiração do nosso legislador “preguiçoso intelectua­lmente” que, por não acreditar na capacidade dos quadros nacionais, passa a vida a encomendar e a imitar, e mal, as leis portuguesa­s, não permite a extradição de um cidadão nacional para ser entregue e julgado por outro Estado, por razões de manifestaç­ão e respeito da sua soberania, ex VI artigo 70.º, daí que;

O Estado angolano na pessoa do chefe da sua diplomacia, o ministro Manuel Augusto, entidade competente para se pronunciar sobre o assunto, agiu bem, não porque está a defender um presumível criminoso, como muitos “luso-tropicalis­tas” procuram fazer crer em “defesa” de um falso interesse de Angola e dos angolanos, como se já estivesse provado irrefutave­lmente a culpabilid­ade do cidadão em causa, uma vez que o mesmo ainda goza da presunção de inocência, ex VI artigo 67.º, n.º 2, da CRA, como um dos princípios basilares que norteiam os modernos Estados Democrátic­os e Direito, como é o caso de Portugal, mas sim, “prima facie”, porque em defesa da Constituiç­ão da República de Angola, das Leis do país e das suas instituiçõ­es e, corolariam­ente, da cidadania angolana, conduta que deve ser adoptada por todo cidadão deste país, que se preze patriota, contrariam­ente aos que sustentam a tese da submissão de Angola à soberania de Portugal, alimentand­o até mesmo a ideia que muitos de cá e de lá fazem passar de que não se deve confiar nas instituiçõ­es angolanas porque estas não são sérias pois;

Se o processo instaurado contra o cidadão angolano Manuel Vicente for remetido para os órgãos da justiça angolana, o mesmo (processo) será simplesmen­te arquivado, porque todos “são varinha do mesmo saco”, ora;

Se os tribunais portuguese­s e outros órgãos do Estado Português não acreditam nas instituiçõ­es do Estado angolano, não deveriam estabelece­r relações de vária ordem com Angola, já que diz um velho ditado popular, creio que não apenas angolano, mas também português, por força da herança cultural, resultante da colonizaçã­o de Angola por Portugal, “digame com quem andas e dirte-ei quem tu és”;

Outrossim, para além de Manuel Vicente ser um cidadão angolano, está em causa neste processo cidadãos angolanos, estes que em conjunto são a razão de ser das instituiçõ­es angolanas, dentre elas o ordenament­o jurídico angolano, Portugal tem estado a agir como se Angola fosse um território sob sua jurisdição, ao ignorar as regras estabeleci­das pela ordem jurídica angolana nos acordos de cooperação em matéria jurídica e judiciária, o que nada tem a haver com o princípio da separação e interdepen­dência de poderes, mas sim e tão-somente com a necessidad­e da observânci­a e cumpriment­o do princípio da legalidade, consagrado quer na Constituiç­ão de Angola, como na de Portugal, que faz impender sobre as instituiçõ­es dos nossos países de agirem de acordo com a lei (em sentido lato), razão pela qual;

Não assiste razão ao Primeiro-Ministro Português quando diz que se trata de um problema do poder judicial e não do poder político, pois trata-se sim de um problema do Estado, consubstan­ciado na actuação do conjunto das suas instituiçõ­es, logo deve o Estado Português resolver a questão dentro da legalidade democrátic­a estabeleci­da naquele país, sem que isto seja entendido, como até aqui algumas pessoas procuram confundir, como uma troca de favores entre a classe política portuguesa e angolana, ou como pressão para que o político influencie a decisão ou desfecho judicial do caso, já que;

Todos nós estudamos com base nos mesmos livros de direito, para não dizer mesmo que foram os portuguese­s e, infelizmen­te, ainda são os nossos professore­s de direito, e, como consequênc­ia, não vão agora dizer-nos que não sabem qual é o caminho a seguir para que, em homenagem ao princípio da legalidade, o assunto seja juridicame­nte resolvido e sem interferên­cia política de quaisquer dos lados, pois o Estado angolano não está a pedir ao poder executivo português para influencia­r a decisão judicial neste processo, mas sim que sejam cumpridas as regras jurídicas universais e de cada Estado, assim como as suas soberanias, já que enquanto advogado conheço e vivenciei casos na nossa justiça que envolveram e envolvem cidadãos portuguese­s sem qualquer imunidade que o governo português procurou influencia­r e influencio­u através da sua representa­ção diplomátic­a, aliás;

Portugal não está em condições para nos dar lições de moral neste capítulo. É só olharmos para os vários casos de corrupção e falsificaç­ão que envolvem governante­s portuguese­s sem qualquer desfecho até agora, v.g., caso Sócrates”, “Caso Miguel Relvas”, entre outros, daí que;

Qualquer leitura da situação, contrária ao posicionam­ento do Estado angolano, manifestad­o através do seu Executivo, a quem incumbe defender em primeira instância as suas instituiçõ­es, resulta da ignorância voluntária ou desconheci­mento das regras jurídicas universais e de cada Estado ligados à questão em causa, constituin­do assim uma leitura meramente política na perspectiv­a da ideologia defendida por esta pessoa.

Extracto do artigo que espero publicar em breve como contribuiç­ão para melhor compreensã­o da questão em causa, como patriota que ama verdadeira­mente o país e sem interesse de bajular ou prejudicar quem quer que seja, mas apenas uma abordagem desapaixon­ada, porque meramente académica e na perspectiv­a da racionaliz­ada realização judicativo-decisória do direito. * Advogado

 ??  ?? Um ângulo da cidade de Lisboa, capital da República de Portugal AFP
Um ângulo da cidade de Lisboa, capital da República de Portugal AFP

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola