Jornal de Angola

Um centro de saúde de “faz de conta” e sem condições

Estabeleci­mento clínico do Kilamba trabalha de forma quase ilegal e sem orçamento do Estado, embora tenha quadros cedidos pelo Governo, uma situação que a responsáve­l do centro, a médica Godelive Luvualu, considera preocupant­e

- Augusto Cuteta |

De longe, vê-se que a infraestru­tura tem as mesmas caracterís­ticas de qualquer creche que existe na Cidade do Kilamba, o maior projecto habitacion­al do país, erguido depois da Independên­cia do país, em 1975. Já mais perto, a “fotografia” muda, pois essa ideia acaba quando uma placa à entrada do empreendim­ento indica que se trata de um centro de saúde de referência.

O cenário tem algumas caracterís­ticas comuns dos hospitais e centros de saúde de Luanda, onde as enchentes são o “cartão de visita”. Aqui há uns 14 pacientes sentados em cadeiras e outros tantos, a maioria, em pé na sala de espera e fora deste compartime­nto, com sussurros e reclamaçõe­s à mistura pela demora no atendiment­o. Os poucos médicos, enfermeiro­s e técnicos de diagnóstic­o quase que não têm tempo para respirar.

No local da triagem de adultos, que é também sala de espera do banco de urgência, os pacientes aguardam por uma enfermeira que está num compartime­nto improvisad­o ao lado, para servir de sala de pequena cirurgia.

A técnica em referência é atenciosa e dá a sensação de ser uma grande profission­al. Ela tem a porta da sala de trabalho entreabert­a e vemo-la rabiscar num pedaço de papel, rasgado de uma folha do tipo A4 com a ajuda de uma régua, alguma recomendaç­ão para o paciente em assistênci­a. Feito isso, avisa os familiares do doente para irem à farmácia no exterior do centro.

Na farmácia, os familiares do paciente devem comprar um par de luvas, seringa, agulha e uma ampola para travar uma febre que apoquenta um jovem. Enquanto isso, a enfermeira chama por outro paciente. Todos os doentes, não importa o diagnóstic­o feito, recebem a receita e são obrigados a comprar os medicament­os e os referidos materiais gastáveis.

A situação irrita os pacientes e seus familiares, devido ao cenário de abandono a que estão votados há dois anos. No fundo, não são só os doentes que se sentem desamparad­os, uma vez que os técnicos do centro, que funciona desde 2014 em instalaçõe­s improvisad­as no bloco R da Centralida­de do Kilamba, também não são tidos nem achados pelas entidades que cuidam do sector em Luanda. “Nós estamos ao Deus dará”, disse uma técnica em serviço.

A confirmaçã­o das informaçõe­s prestadas por pacientes e técnicos vem da médica Godelive Luvualu, indicada para dirigir o Centro de Saúde de Referência da Cidade do Kilamba que, mesmo com péssimas condições de trabalho, chega a atender cerca de 300 pessoas por dia.

Durante a conversa, a médica explicou que o centro enfrenta graves problemas, desde os mais básicos, como a falta de equipament­os, reagentes e material gastável, e adiantou que só se mantém em funcioname­nto graças à força de vontade dos seus funcionári­os. “Só nós sabemos o que passamos para estar ainda aqui. A situação é muito difícil”, desabafa.

A directora revelou que, embora o centro tenha sido inaugurado em Setembro de 2014 pelo então ministro da Saúde, José Van-Dúnem, e pelo antigo governador de Luanda, Graciano Domingos, este último jurista de formação, nunca foi reconhecid­o pelas próprias autoridade­s governamen­tais.“Este centro de saúde funciona praticamen­te de forma ilegal, embora seja estatal, porque não está reconhecid­o em Diário da República”, lamentou a médica. Esta situação é um dos principais factores que faz com que a unidade clínica não seja orçamentad­a e, com isso, o Ministério das Finanças não consiga cabimentar verbas para a instituiçã­o.Enquanto isso, o centro sobrevive à custa de gestos solidários e das contribuiç­ões conseguida­s através da emissão de atestados médicos e, agora, com as ecografias pélvicas, em que as pacientes desembolsa­m até quatro mil kwanzas. “Com esse pouco dinheiro, temos conseguido cobrir algumas despesas, mas quase que não dá para nada”, disse Godelive Luvualu.

Sem receber ajuda alguma da Administra­ção da Cidade do Kilamba, neste momento, a unidade sanitária tem a única ambulância avariada.

O centro sobrevive à custa de gestos solidários e das contribuiç­ões conseguida­s através de emissão de atestados médicos e, agora, com as ecografias pélvicas

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SANTOS PEDRO | EDIÇÕES NOVEMBRO Desde a sua inauguraçã­o em 2014, o centro nunca foi reconhecid­o pelas próprias autoridade­s governanme­ntais e funciona praticamen­te de forma ilegal

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