Jornal de Angola

O comprimido solitário

- MANUEL RUI

Entregaram-me a embalagem, abri. Tirei a placa e só tinha um comprimido. Fiquei perplexo. O papelinho do caixa. Sete mil e tal. Mandei o emissário para voltar à farmácia mas, antes, rimonos os dois a olhar um para o outro. Ele lá foi e eu fiquei à espera da caixinha que costumava conter três placas. O emissário foi e veio rápido que a farmácia é perto aqui de casa. Abri a nova caixa. Tinha uma lâmina sem um único comprimido. Levantei-me. Disparatei. Pensei em ligar para a polícia mas desisti. Quem ia receber uma participaç­ão por causa de um comprimido solitário e de uma placa esgotada? Ri-me, por dentro pois não podia contar a ninguém. Tirei-me dos meus cuidados e andámos até à farmácia. A moça, jovem, estava sozinha. Comecei a desancar, ladra e mais cognomes, ela nervosa, que a responsáve­l não estava e tal e coiso, desatou numa choradeira e falou que era dos clientes que apareciam a pedir que vendessem só um comprimido. Como assim? Se isto é para doença crónica e tem de se tomar todos os dias? Nada, escritor, li o seu livro na escola, tenho respeito, desculpe. São pessoas mais velhas e pobres e só fazem tratamento quando alguém lhes dá uma esmola, então pedem para que se venda um, dois ou três comprimido­s, depois, sem querer eu enganome nas caixas mas daqui para a frente não volta a acontecer. Recebi a caixa fechada. Abri. Estava completa.

Pelo caminho, o meu empregado falava de voz embargada, “doutor é verdade, coitada da moça!” E dos doentes pobres, acrescente­i. E cheguei a casa todo estragado, agarrei o aparelho de medir a pressão arterial. Estava alta. Furei com um palito a bolinha vermelha e coloquei-a debaixo da língua, frustrado, triste a pensar que entre essas pessoas podia estar aquela senhora, das duas pernas paralítica­s, sentada no passeio da curva da Sagrada Família a pedir esmola, quem sabe… pronto, um dia destes escrevo uma crónica.

Outro fármaco, que faltam muitos na maioria das farmácias, o tio Jorge compra sempre na mesma farmácia, custa nove mil e tantos quase dez mil. Traz uma lâmina. Quando a caixa chegou tirei a lâmina mas, por mor daquela outra cena do comprimido solitário li na caixa que eram vinte e seis “revestidos.” Tinham que ser duas lâminas. Então quase desde o início da minha doença que ando a ser aldrabado. Não consegui lá ir…eu que nos tempos de advogado trabalhei na legalizaçã­o daquilo que hoje é um império de farmácias. Foi lá o tio Jorge. Voltou com as duas lâminas e que a senhora pedia desculpa porque era hábito comprarem só uma e aí eu chamei um nome feio à mãe daqueles ladrões ou daquela ladra que me andavam a roubar fazia um tempão.

Fiquei surpreendi­do como este governo, tão depressa, se lembrou dos medicament­os para portadores de doenças crónicas. Nunca no tempo em que chovia petróleo e os avestruzes em vez de ovos punham diamantes desse tamanho que dá cinco omeletas, nunca, que eu saiba, alguém se lembrou, nem as misses, deste problema. Agora o governo decide pela isenção de taxas para esses medicament­os. Com o devido respeito mas a solução devia ser como acontece noutros países. O paciente com diabetes um ou dois, ou hipertenso, tem um cartão para quando for à farmácia, com preço já definido, pagar menos porque há uma compartici­pação do Estado. Só por retirada da taxa, o vendedor vai vender ao preço que lhe apetecer pois aqui, infelizmen­te, também há preços que variam de farmácia para farmácia. Porém, o pressupost­o principal é a existência de fármacos nas farmácias. Antes, as grandes clínicas tinham farmácia. Agora até essa grandona aqui na Gika não tem medicament­os.

O que espanta é que as farmácias não têm medicament­os mas estão repletas de cosmética importada.

Pior é nas províncias. Já estive a morrer numa clínica em Benguela por falta de um fármaco… veio o avião e levaram-me o remédio no desembarqu­e em Luanda.

Depois há casotas como essas das fotografia­s, sem qualquer limpeza e que vendem medicament­os genéricos de origem indiana. Anda meio mundo a correr atrás dos vendedores ambulantes mas deixam em paz os fixos que têm farmácias instaladas nos mercados. De onde saem esses medicament­os de marca? Quem coloca medicament­os para o sono, só permitidos por receita médica (eu ando com um cartão de uma clínica do sono), quem vende aos miúdos esses medicament­os? Temos uma instituiçã­o que forma gente para farmácias. Conheço alguns profission­ais exemplares, na sabedoria e atendiment­o.

O governo pode tomar as melhores medidas mas a verdade é que as organizaçõ­es sociais, ordens, sindicatos ou fundações têm que colaborar na higienizaç­ão mental da sociedade civil. A sociedade civil para merecer um governo empenhado, ela própria deve empenhar-se na melhoria de atitude comportame­ntal.

Tudo isto por causa do comprimido solitário…

O governo pode tomar as melhores medidas mas a verdade é que as organizaçõ­es sociais, ordens, sindicatos ou fundações têm que colaborar na higienizaç­ão mental da sociedade civil

 ??  ?? DR
DR
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola