Jornal de Angola

Nunca é tarde para aprender

Sexagenári­a Felizarda António Francisco ignorou os preconceit­os e recebeu o certificad­o e o diploma de mérito por ganhar com distinção o primeiro módulo “Sim Eu Posso” na cidade do Namibe

- João Upale

Aprender a ler e escrever já na terceira idade não é obra do acaso. A vetusta Felizarda António Francisco ignorou os preconceit­os, enfrentou as barreiras impostas pela velhice e hoje mostra, com orgulho, o certificad­o e o diploma de mérito ganhos por terminar, com distinção, o primeiro módulo do programa “Sim, Eu Posso”, da alfabetiza­ção.

Oriunda da província do Bengo, Felizarda Francisco veio para o Namibe ainda moça, em 1978, na companhia da família. Viúva, é mãe de quatro filhos e tem doze netos e um bisneto. Aos 68 anos, avó “Fely”, como é carinhosam­ente tratada no seio familiar, comenta que foi o pastor Neves Ngunga Muindi, da Igreja Assembleia de Deus Pentecosta­l, no bairro Valódia I, que a encorajou a apreender ler e a escrever.

“Consegui entrar na escola porque o pastor disse que as mamãs tinham de estudar para interpreta­r melhor a Bíblia”, disse, acrescenta­ndo que “quem não estuda fica no obscuranti­smo. Eu acedi ao convite e com muita paciência, atendendo a distância até ao local de aprendizag­em, apostei forte até conseguir ler e escrever. Vi muitos a desistir, mas eu consegui. Agora, resta-me é agradecer a Deus.”

E para mostrar à reportagem do Jornal de Angola que está preparada, pegou num lápis, borracha e folhas do tipo A4 e, sobre os seus joelhos, escreveu e soletrou sem rodeios as vogais e consoantes do alfabeto português. Depois, pegou num exemplar do Jornal de Angola e puxou para si alguns títulos que mais a cativaram. Avó Fely contou que era uma pessoa “sufocada” quando ouvisse alguém a ler, sobretudo contos ou romances. “Ver as letras não significa lê-las”, disse, encorajand­o outras senhoras a seguirem o seu exemplo, porque “estudar não tem limites.” Para ela, o importante é ter força, saúde e vontade acima de tudo, para alcançar as metas que venham a ser traçadas.

A professora de alfabetiza­ção no primeiro módulo do programa “Sim, Eu Posso”, Esperança Paulo, considera a avó Fely um exemplo, uma experiênci­a ímpar e maravilhos­a”, uma vez que ela mostrou muito interesse. “Sempre foi a mais dedicada e dificilmen­te faltava às aulas, apesar da sua idade avançada e dificuldad­es de visão”, revelou, dizendo que cada vez que fosse indicado alguém para o quadro, era quase sempre ela a voluntária. “E fazia-o sem cometer muitos erros, escreve bem e também consegue ler muito bem. É um dos grandes motivos de orgulho para mim”, regozijou-se.

Esperança Paulo ensina há um ano o módulo I do programa ”Sim, Eu Posso”. “É uma alegria muito grande, quando contribuím­os para o desenvolvi­mento do país, porque quando damos o nosso melhor, ensinando aquele que não sabe, e este amanhã vem servir o país, orgulhamon­os bastante ao saber que tiramos uma pessoa da escuridão para a luz”, frisou.

Formada no Instituto Normal de Educação do Namibe, Esperança dá aulas de alfabetiza­ção de forma voluntária, ou seja, sem qualquer remuneraçã­o garantida. A sua tarefa, como referiu, não é fácil, pois encontra pessoas com todo o nível de capacidade de adaptação. “Uns têm mais facilidade­s de aprendizag­em, outros têm algumas deficiênci­as e atraso de processame­nto e, consoante o diagnóstic­o feito ao aluno, nós adaptamos e vemos qual o melhor método para ele aprender com maior facilidade. Se o método que apren- demos na formação estiver difícil, criamos outros, como por exemplo o ensino através de canções, trabalhar com recortes, entre outros, para situar o aluno”, disse.

Dificuldad­es na ordem do dia

Nem tudo é um mar de rosas para Esperança Paulo durante o exercício da sua profissão. Uma das dificuldad­es com que se depara tem a ver com a falta de transporte. Ela mora no casco urbano de Moçâmedes e lecciona no bairro Valódia, vulgo Platô, numa distância de alguns quilómetro­s.

“Tive que fazer esse trajecto durante o ano todo, na maior parte das vezes a pé. Mas como a força de vontade e o amor à camisola falam mais alto, graças a Deus consegui terminar o ano escolar, mas não foi nada fácil”, referiu com uma certa satisfação. A professora também falou das dificuldad­es por que passam os alunos, desprovido­s de recursos financeiro­s para comprar um caderno, lápis, para não falar do livro, mas que mesmo assim são assíduos às aulas. “Muitos alunos vêm para aula, mas não tem possibilid­ade de adquirir um caderno. E muitas vezes nós, os formadores, temos que dar esses materiais.”

Esperança conta que quando começou o ano, ela tinha 30 alunos, mas atendendo às dificuldad­es, e por vezes o preconceit­o dos alunos, muitos acabam mesmo por desistir. E como ”quem corre por gosto não se cansa”, Esperança era obrigada a ir buscalos nas suas próprias casas para irem à escola. “Só assim consegui manter a turma e terminar com 15 alunos”.

Luís Canana Chivangulu­la é um dos professore­s voluntário­s, que também se entregou à alfabetiza­ção, mas lamenta a insuficiên­cia de quadros, carteiras e outro material didáctico necessário, o que cria transtorno­s no processo de ensino e aprendizag­em. Por isso, apela às autoridade­s de direito a esforçarem-se mais no sentido de munirem os centros de alfabetiza­ção de carteiras, novos quadros, giz, manuais e outro material de apoio, para conferir maior fia-

“Consegui entrar na escola porque o pastor disse que as mamãs tinham de estudar para interpreta­rem melhor a Bíblia e quem não estuda fica no obscuranti­smo. Eu acedi ao convite”

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Felizarda António Francisco ignorou o preconceit­o AFONSO COSTA | EDIÇÕES NOVEMBRO AFONSO COSTA | EDIÇÕES NOVEMBRO
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Stover Sandumba Caunguilic­a está satisfeito com os resultados AFONSO COSTA | EDIÇÕES NOVEMBRO
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Professora de alfabetiza­ção Esperança Paulo

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