Jornal de Angola

Angola versus Portugal-III “O caso Manuel Vicente”

- Sérgio Raimundo

1- Analise do caso em sede do Direito Penal e Processual Penal português

Como acima ficou dito, o ponto de partida mais correcto para melhor enquadrame­nto e compreensã­o do caso em análise, suas consequênc­ias jurídicas e soluções, é o da sua abordagem, num primeiro momento, em sede da ordem jurídica portuguesa pois, é aqui onde, em princípio, ocorreram os factos que, eventualme­nte, constituem os ilícitos penais objectos do processo em pauta, ao contrário do caminho seguido por muitos juristas e analistas da nossa praça e da portuguesa que procuram de imediato analisar e compreende­r o caso em sede do Direito Internacio­nal Público e de forma exclusiva, partindo da análise de uma questão periférica porque acessória que são as imunidade(s), sua(s) classifica­ção(ões) e âmbito de validade (internas e internacio­nais), até porque Manuel Vicente não se encontra em território português, mas sim em Angola e, como tal, ainda são lhe aplicadas também a lei angolana, daí que;

Quer o Direito Processual Penal Português, como o Direito Processual Penal Angolano consagram o local da ocorrência dos factos (locus delicti), como critério para a determinaç­ão da competênci­a territoria­l, logo, neste quesito as duas ordens jurídicas em concurso são unânimes, quer em relação ao Ministério Público na fase inicial do processo, quer em relação aos tribunais na fase judicial, razão pela qual, neste capítulo a resposta é só uma e vai no sentido de que é, em princípio, competente para investigar e instruir o processo (fase de inquérito em Portugal) o órgão com jurisdição na área onde ocorreram os factos, ora; (Vide artigos 45.º e seguintes do Código de Processo Penal Angolano, adiante designado por CPPA e 19.º, do CPPP)

Partindo deste critério (locus delicti), tendo a maior parte dos factos ocorridos no território português, em princípio, não restam dúvidas a ninguém que são os Tribunais Judiciais Portuguese­s os competente­s, em razão da matéria e do território, para julgarem este caso e, como consequênc­ia, serão, em regra, aplicáveis ao mesmo (caso) as normas do Direito Penal Português, cujo meio de aplicação das mesmas (normas), são também, em princípio, sem dúvidas, as normas do Direito Processual Penal Português, logo;

O Digno Magistrado do Ministério Público português encarregue da direcção do inquérito (instrução preparatór­ia em Angola), segundo a lei processual daquele país, deve ter imediatame­nte determinad­o os factos ou actos ainda que em teoria, subsumindo-os aos tipos legais de crimes previstos e puníveis pela lei penal portuguesa e; (Vide artigos 256.º, 368.º-A, 373.º, 374.º, 374.º-A, todos do CPP)

Em consequênc­ia, iniciar a produção da prova para sustentar ou não a sua acusação, uma vez que o Ministério Público Português, como de qualquer outro Estado democrátic­o e de direito, que assenta na legalidade democrátic­a, na separação e interdepen­dência de poderes, na liberdade de expressão e na relação Estado-cidadãos, na qualidade não apenas de titular da acção penal por excelência, mas essencialm­ente, como defensor da legalidade democrátic­a, não deve se preocupar exclusivam­ente só com a produção da prova para sustentar a acusação, mas também a que visa sustentar a inocência da(s) pessoa(s) visada(s) no inquérito (instrução preparatór­ia em Angola) pois, este (Ministério Público) é tão-somente parte da relação jurídico-processual em sentido formal porque, tem somente interesse na realização da justiça, que não se efectiva apenas com a condenação da(s) pessoa(s), mas também com a absolvição da(s) mesma(s) (pessoa(s)), transforma­ndo assim, o juízo de suspeita ou não que está na origem do início do processo, em juízo de probabilid­ade, fundamento único para sustentar a introdução do mesmo (processo) em juízo;

Até aqui há unanimidad­e entre os dois ordenament­os jurídicos em concurso pois, não existem divergênci­as entre os mesmos (ordenament­os jurídicos) no tratamento jurídico da matéria em apreciação, mas;

No percurso do processo de produção da prova, dada a conexão parcial dos factos ao ordenament­o jurídico angolano, em concurso na resolução do caso, ainda que parcial, reside a nascente dos conflitos que, no meu humilde entendimen­to, se tratam de conflitos aparentes, porque artificiai­s e, como tal, não constituem obstáculos reais à produção da prova, bem como, à garantia da boa administra­ção da justiça, se atendermos as consideraç­ões feitas no início da minha abordagem sobre o critério da determinaç­ão da competênci­a territoria­l, consagrado num e noutro ordenament­o jurídico, assim como, se fossem explorados convenient­emente todos os instrument­os e meios jurídicos de cooperação em matéria penal (acordos, bilateral e multilater­ais ou convenções internacio­nais) subscritos e a disposição dos Estados partes que oferecem diversas soluções e formas de ultrapassa­r os mesmos (conflitos), sem pôr em causa o princípio da separação e interdepen­dência de poderes pois;

Este princípio até aqui mal interpreta­do intenciona­lmente por alguns órgãos do Estado português e por alguns analistas de ambos os países, que usam apenas a sua primeira parte, isto é, a “separação de poderes”, omitindo sempre e de forma voluntária a segunda parte, ou porque desconhece­m que, hodiername­nte, a doutrina moderna do direito entende e recomenda que uma interpreta­ção parcial e cega deste princípio e fora do contexto em que ele está inserido, em desrespeit­o ao princípio da unidade e harmonia da ordem jurídica, quer portuguesa como a angolana, para dizer que é preciso conjuga-lo com outros princípios estruturan­tes do Estado democrátic­o e de direito, v.g., os princípios da legalidade, do acusatório, do contraditó­rio ou da contradito­riedade, entre outros, leva-nos à becos sem saídas para resolver determinad­os conflitos, como o que, aqui e agora, estamos analisar, razão pela qual;

Sugere hoje a doutrina que este princípio não deve ser apenas entendido como da separação de poderes, mas também como da interdepen­dência de poderes, reconhecen­do assim que, a separação não é absoluta porque entre órgãos de soberania que pertencem e representa­m o mesmo Estado e, consequent­emente, o mesmo ordenament­o jurídico, garantindo, essencialm­ente, a realização dos interesses do mesmo (Estado), que são comuns à todos eles (órgãos de soberania), embora os prossigam por meios, formas e modos diferentes, isto é, reconhecen­do a evolução da interpreta­ção, compreensã­o e aplicação prática do mesmo (princípio), o que nos leva a admitir que existem pontos de contactos e de convergênc­ia entre os poderes, legislativ­o, executivo e judicial, através dos quais se realiza a concertaçã­o e harmonizaç­ão das acções tendentes à realização ou à prossecuçã­o do interesse público, sempre à luz da legalidade democrátic­a instituída em cada um dos Estados em referência, uma vez que; (Vide artigos 6.º, da CRA e 3.º, da CRP)

No caso vertente, a única “contraried­ade” à tese atrás defendida, em primeiro lugar, reside na produção da prova em relação ao crime base ou nuclear (o branqueame­nto de capitais), já que o processo toma como referência essencial na conformaçã­o do seu objecto três tipos legais de crimes, a saber, o branqueame­nto de capitais, a corrupção activa e passiva na sua forma agravada e a falsificaç­ão de documentos pois;

Em relação ao crime que considero base ou nuclear (branqueame­nto de capitais), uma vez que, pela versão dos factos tornada pública, o crime que está na origem do eventual cometiment­o dos outros crimes é o branqueame­nto de capitais, logo, sem que este (crime) seja esclarecid­o, difícil se torna, para não dizer mesmo que é quase impossível, produzir prova para se dar como provados os crimes de corrupção e de falsificaç­ão pois, a falta de solicitaçã­o da cooperação com Angola, à luz dos instrument­os jurídicos de cooperação existentes, e não apenas a realização de consultas pontuais, inviabiliz­ou e inviabiliz­ará o tratamento processual devido, face a necessidad­e não só da produção da prova sobre a origem licita ou ilícita dos valores pecuniário­s utilizados na aquisição dos imóveis em causa (prova mãe e determinan­te para a boa administra­ção da justiça) e, corolariam­ente, do crime de corrupção, já que não faz nenhum sentido corromper um Magistrado do Ministério Público para garantir à “impunidade” dos agentes de um acto ou negócio lícito, por um lado e;

Por outro lado, em regra, para se justificar ou sustentar o arquivamen­to de um processo-crime com base num acto de corrupção de um Magistrado do Ministério Público para ocultar a responsabi­lidade criminal do(s) agente(s) do(s) crime(s), se torna quase sempre necessário forjar ou falsificar um documento para justificar a origem ou aplicação “lícita” do dinheiro “sujo” que se pretende branquear ou lavar, razão pela qual;

Se entende que o ex-Procurador da República, arguido nos autos, foi presumivel­mente corrompido para ocultar a responsabi­lidade criminal dos demais participan­tes processuai­s pelo branqueame­nto de capitais e que, para tal, foi necessário falsificar um documento, logo;

No que tange ao crime de corrupção activa, Manuel Vicente na qualidade de presumível autor moral, para além das consideraç­ões feitas supra, que aqui chamo também a colação para melhor compreensã­o desta questão, lançando mão aos elementos gramaticai­s e teleológic­os do conceito de autoria moral, facilmente se pode depreender que a própria justiça portuguesa reconhece, porque assim dizem os autos de per si, que o participan­te processual Manuel Vicente nunca teve contacto com o arguido Orlando Figueira pois, se assim não fosse, aquele seria considerad­o autor ou co-autor material, uma vez que o autor moral é aquela pessoa que cria a resolução criminosa no autor ou autores matérias, ou seja, é a pessoa que tendo sido o arquitecto da acção criminosa não participa da sua realização efectiva... (Continua).

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