SÉRGIO RAIMUNDO
Angola versus Portugal - V "O caso Manuel Vicente"
Continuando a abordagem do caso em apreço e em sede do Direito Penal e Processual (Português), importa dizer e acrescentar que;
Quer o Direito Processual Penal Português, assim como o Direito Processual Penal Angolano, só permitem que seja proferida uma decisão condenatória com base num juízo de certeza, como consequência da consagração nas suas Constituições do princípio da presunção da inocência, (vide artigo 67.º, n.º 2, da CRA e 32.º n.º 2, da CRP), logo;
Não sendo possível aos órgãos da justiça portuguesa, sem o consentimento e cooperação das autoridades competentes angolanas, produzirem a prova sobre a origem ilícita ou lícita dos valores monetários utilizados na compra dos imóveis em referência no processo, a única solução era de chamar inicialmente a colação o Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária existente entre Angola e Portugal no âmbito da cooperação em matéria penal, Título III, Subtítulo I, Capítulo I, Secção I, ainda na fase de inquérito (instrução preparatória em Angola) e verificar no seu "licere" quais as normas que asseguram a realização desta cooperação para garantir a boa administração da justiça e, corolariamente, garantir a realização dos fins últimos ou supremos do direito, como a certeza e a segurança jurídicas nos dois países, no sentido de os seus cidadãos tomarem consciência de que se cometeram crimes tanto num como no outro território, não ficarão impunes, cumpridas determinadas formalidades legais, à luz do acordo atrás referenciado, alias, esta é a sua razão de ser, daí que;
Lançando mão ao preceito do artigo 32.º, do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária em referência, a justiça portuguesa (entenda-se os órgãos competentes na fase inicial do processo, no caso o Ministério Público português), deveria solicitar à justiça angolana, mais concretamente, ao Ministério Público, mediante carta rogatória, independentemente de se preocupar ou procurar saber qual será o teor da resposta, informações ou a realização de diligências de produção da prova necessária à descoberta da verdade material e, neste quesito, não devem ser apenas consideradas as provas para sustentar a condenação, mas também para inocentar os visados pois;
É perigosa a tese defendida pelo Ministério Público Português e agora também assumida pelo TJCL e por alguns analistas angolanos e portugueses, segundo a qual, a boa administração ou realização da justiça se manifesta tão-somente através da condenação dos acusados, em flagrante violação do princípio do acusatório, também com dignidade constitucional em Angola, como em Portugal, "ex vi" artigos 174.º, n.º 2, da CRA e 32.º, n.º 5, da CRP, que é aquele segundo o qual a entidade que acusa não julga e a que julga não acusa, com o desígnio de garantir a imparcialidade, objectividade e, assim, no final do julgamento, seja proferida uma decisão justa, razão pela qual;
Residindo na ideia errada e subjectiva de boa administração da justiça a causa principal da “crise” que se instalou nas relações entre os dois países, crise esta que, contrariamente ao que se propala cá e lá, não resulta da necessidade do respeito pelo princípio da separação e interdependência de poderes, mas sim da situação retro mencionada, já que;
O que o Ministério Público português fez até aqui foi apenas consultar, por via de ofícios e não de cartas rogatórias como era recomendável, o seu homologo angolano, no sentido de saber qual seria a possibilidade de Angola responder positivamente à uma carta rogatória sobre a notificação, audição e constituição em arguido do cidadão angolano Manuel Vicente, ao que o Ministério Público angolano respondeu de forma objectiva e de acordo com a lei angolana, em homenagem ao princípio da legalidade, na sua qualidade de defensor da legalidade democrática, como também consagra a Constituição portuguesa (Vide artigos 186.º, corpo, da CRA e 219.º, da CRP), que por força da qualidade que ostentava, na altura, a pessoa visada, à luz da Constituição angolana, não era possível responder positivamente, ex vi artigos 127.º, n.º 3 e 131.º, nº 4, já que qualquer dos instrumentos de cooperação jurídica internacional existentes entre os dois países mandam nestes casos aplicar ou observar a lei do Estado requerido que, no caso, é a lei angolana e;
Num outro momento, questionou o seu homologo angolano sobre se a lei da amnistia aprovada e publicada pelo Estado angolano (Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto) era ou não aplicável ao caso em apreço e, em resposta nos termos da lei angolana, como determina o Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre Angola e Portugal, nestes casos, ex vi artigo 38.º, n.º 1, que na hipótese de serem crimes contemplados na lei da amnistia, obviamente, que esta seria aplicada ao caso em análise, em homenagem ao princípio da legalidade, também consagrado no direito português como princípio estruturante de um Estado democrático e de direito, segundo as explicações e as justificações da inacção do Ministério Público Português que deu lugar a esta situação de irregularidade grave, básica e determinante para a boa administração da justiça, na fase inicial do processo e, como consequência, originou a crise que hoje afecta as relações entre os dois países, uma vez que;
Partiu da ideia errada de que fazer justiça é apenas condenar as pessoas, logo, subentende-se que na perspectiva defendida por alguns órgãos da justiça portuguesa, responsáveis na fase de inquérito (fase de instrução preparatória em Angola) e na fase judicial, em primeira instância, absolver ou amnistiar estas pessoas é garantir a impunidade e, corolariamente, sustentar a injustiça, visão arcaica e inadmissível num Estado que se diz democrático e de direito e que se espera mais “desenvolvido” nessas matérias em relação à Angola, contrariando assim, a sua Constituição e as leis da República Portuguesa, ex vi artigos 3.º, n.º 2, 13.º, 29.º, n.º 4, parte final, da CRP e 127.º, do CP, ora;
Da investigação e consultas que realizei, confirmou-se que o Ministério Público Português não enviou qualquer carta rogatória à Angola, como se diz por aí, mas apenas colocou as questões atrás descritas ao Ministério Público Angolano, a título de consulta, através de ofícios, e a primeira carta rogatória só agora a cerca de mais de um mês, e já no calor da discussão avançada deste caso na praça pública que, para os que têm memoria curta, foram os órgãos da justiça portuguesa, mais concretamente, o Ministério Público Português quem, com o processo em segredo de justiça, iniciou e alimentou a discussão do caso em pauta na comunicação social portuguesa, inicialmente e, mais tarde, na comunicação social angolana e não só, mesmo na altura em que a pessoa visada se encontrava no exercício da função de Vice-Presidente da República de Angola, o que demonstra que não desconheciam a sua qualidade, sem que para tal, até aqui fosse alguém responsabilizado pela violação do mesmo (segredo de justiça), é que foi endereçada às autoridades angolanas, com a data de 7 de Novembro do ano findo, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa e não pelo Ministério Público Português, ao abrigo não do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciaria existente entre Angola e Portugal, mas em sede da Convenção de Auxilio Judiciário em Matéria Penal Entre os Estados da CPLP, quando;
Em princípio, estes dois instrumentos jurídicos de cooperação judiciária, já não se aplicam à fase judicial do processo, como se pode extrair do "licere" dos mesmos e dos elementos gramaticais e teleológicos do conceito de judiciário pois, deveria sim aquele Tribunal, lançar mão a Convenção das Nações Unidas Contra Corrupção, Capítulo IV, sob a epigrafe Cooperação Internacional, nos seus artigos 43.º à 50.º, mais concretamente, com base no artigo 46.º, sob a epígrafe “assistência judicial recíproca” que permite o auxilio entre Estados Partes na fase judicial do processo, aplicável ao caso vertente, porque Angola e Portugal são partes subscritoras deste instrumento jurídico internacional, que também manda observar a lei do Estado requerido na realização de qualquer diligência (solicitação agora da notificação, audição, constituição em arguido e notificação da acusação), no caso a lei angolana, diligência que o Ministério Público Português, caso pretendesse única e exclusivamente garantir a realização da boa administração da justiça, deveria ter realizado na fase administrativa do processo para evitar a polémica actual, desnecessária e prejudicial à realização dos interesses dos portugueses e de Portugal, já que as circunstancias hoje não são diferente, mas;
Ainda assim, a partir do momento em que surge a primeira carta rogatória, não sendo agora relevante se ao abrigo de que instrumento jurídico internacional, já que o Estado angolano a muito esperava, em cumprimento dos vários acordos existentes entre os Estados em referência, pese embora na fase judicial, quando deveria ter sido enviada ainda na fase de inquérito (instrução preparatória em Angola), mas que segundo o velho ditado popular “mais vale tarde do que nunca”, surge aqui a primeira porta de entrada oficial do ordenamento jurídico angolano em cena, através das disposições combinadas dos artigos 1.º e 2.º, da Convenção de Auxilio Judiciário em Matéria Penal Entre os Estados da CPLP, tornando-se obrigatória esta cooperação por parte dos Estados Contratantes e não facultativa como os órgãos da justiça portuguesa entenderam inicialmente, uma vez que a razão de ser de um acordo bilateral ou multilateral é o seu cumprimento obrigatório dentro das regras neles estabelecidas, ao assinarem ou aderirem aos mesmos, em homenagem ao princípio geral do direito “pacta sunt servanda”, tornando assim possível a sua aplicação eficaz, dada a obrigatoriedade do auxílio em matéria penal, até porque o acordo bilateral existente entre Angola e Portugal tem praticamente as mesmas normas do acordo multilateral utilizado, que no seu artigo 32.º diz claramente que “… obrigam-se a auxiliar-se mutuamente em matéria de prevenção, investigação e instrução …”, em regra, bem como, todos estes instrumentos jurídicos de cooperação internacional (em matéria penal), elegem como critério-regra da sua concretização, a aplicação da lei do Estado requerido, mas; (O sublinhado é meu)