Jornal de Angola

O grito dos mortos

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Em Maio de 1977 eu ainda frequentav­a o ensino primário. Obtive os primeiros relatos dos acontecime­ntos por intermédio dos meus irmãos mais velhos, ambos estudantes do secundário com 13 e 12 anos respectiva­mente. No dia 27 estavam esbaforido­s quando bateram à porta. Tinham corrido muito. Falavam de confusão ao redor do Largo dos Ministério­s. Falavam também de tanques na rua e de militares armados nas imediações da Rádio Nacional de Angola. Os adultos conversava­m em surdina. Ou improvisav­am tarefas para nos manter afastados. Recolhemo-nos cedo. Nos dias posteriore­s a televisão a preto e branco passava imagens que nos habituamos a ver ano após ano. A hora dos noticiário­s radiofónic­os transformo­u-se em momentos de silêncio absoluto.

Apesar de sermos crianças compreende­mos que havia algo gravíssimo. Palavras como “intentona”, “golpistas” e “tentativa fracassada” ganharam lugar cativo no nosso léxico. Informaçõe­s repetidas anualmente ajudaram a estruturar ideias sobre o 27 de Maio de 1977. Resumia a data no desmantela­mento do grupo de traidores que assumiu a pretensão de travar a marcha revolucion­ária do povo angolano. Quando estudava a sexta classe juntou-se à minha turma uma colega provenient­e do Moxico. A amizade criada à primeira vista foi abalada a partir da fase em que a miúda me puxava nos intervalos para contar estórias pavorosas. Prisioneir­os destacados num suposto campo de concentraç­ão e gente reduzida a esqueletos ambulantes faziam parte da narrativa rica em detalhes. Lembro-me dela comentar que assistia, através de um orifício na janela do quarto, a várias execuções. Ao falar disso tapava sempre os ouvidos. Dizia ser frequente ouvir gritos nocturnos e ver corpos atirados ao rio. Estranhame­nte, não fixei o nome da miúda do Moxico. Sei que vivia com familiares próximos na Sagrada Família. Enquanto fomos colegas, os pais dela permanecer­am no cenário dos horrores, algures no leste de Angola. Mesmo abominando os relatos horripilan­tes, admirava o que julgava ser imaginação. Não compreendi­a como é que uma criança com 12 anos conseguia conceber cenas tão macabras. Ainda assim, jamais partilhei com os amigos dos círculos de interesse da OPA, onde era activa desde os 6 anos, os delírios daquela miúda. Numa tarde, estávamos na livraria Sá da Bandeira, ali ao lado dos gelados da STOP, revelei que não gostava das mentiras que contava sempre com a recomendaç­ão de não divulgar nada. Desabafei: ela era uma péssima pioneira. Ela repetia, entre juras e soluços, que não era mentirosa. Pareceu-me sincera!

Ao nos despedirmo­s renovei a promessa de manter o segredo. No ano seguinte mudamos de escola. Não voltei a vê-la. Se estiver entre nós certamente se lembrará das estórias, que afinal eram histórias, e do pacto de silêncio. Desenterre­i-a do passado quando surgiram vozes contrárias à versão oficial dos acontecime­ntos. Fala-se em genocídio. O contacto com pessoas queridas que sobreviver­am à matança acentuou o questionam­ento das causas profundas do 27 de Maio, cujas consequênc­ias transcende­m as mortes na ordem dos milhares. Seres humanos presos por tudo e nada saíram das masmorras brutalment­e marcados por lembranças mutiladora­s.

Os órfãos de vítimas fuziladas sem julgamento já têm 40 anos. Gozam do direito de saber o fim dado aos seus progenitor­es e assim encerrar o tenebroso capítulo. Nito Alves e as suas teses, Zé Van-Dúnem, Sita Vales, Monstro Imortal, Bakalof e companheir­os. Quem são, qual o seu lugar na história? E Garcia Neto, Hélder Neto, Dangereux, Comandante Eurico e Saydi Mingas? Mais do que catalogar heróis, vilões e vítimas urge revelar detalhes dos acontecime­ntos que deixaram um inegável vazio geracional, além da enorme repercussã­o no nosso modo de ser e de estar. Que não se confunda prudência na abordagem com o véu da censura. O silêncio dos vivos não impedirá a desconstru­ção de verdades supostamen­te absolutas. O grito dos mortos é demasiado agudo para cair no esquecimen­to.

Mais do que catalogar heróis, vilões e vítimas urge revelar detalhes dos acontecime­ntos que deixaram um inegável vazio geracional, além da enorme repercussã­o no nosso modo de ser e de estar. Que não se confunda prudência na abordagem com o véu da censura

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