Jornal de Angola

“Lideranças académicas têm de ser eleitas”

- ANTÓNIO TOMÁS

António Tomás, professor na Universida­de da Cidade do Cabo, África do Sul, defende, em entrevista ao Jornal de Angola, a eleição das lideranças académicas e considera o novo Estatuto da Carreira Docente do Ensino Superior “a lei mais transforma­dora que Angola produziu até hoje”. O antropólog­o reconhece que o actual Executivo “está interessad­o em imprimir uma nova filosofia à educação”.

Poderia dar aulas nos Estados Unidos da América, onde obteve há sete anos o doutoramen­to em antropolog­ia, mas escolheu o continente africano para poder ficar próximo de Angola, onde nasceu há 45 anos. António Tomás é professor na Universida­de da Cidade do Cabo, África do Sul, que dá prioridade ao recrutamen­to de candidatos que vêm de grandes universida­des do Mundo. Sobre o nosso ensino, António Tomás afirma categorica­mente que “é de muito fraca qualidade” e que “ainda não mereceu grande atenção por parte das nossas autoridade­s”. O antropólog­o acompanha à distância o ensino em Angola, tanto que já tem uma opinião formada sobre o novo Estatuto da Carreira Docente do Ensino Superior. “Esta é a lei mais transforma­dora que Angola produziu até hoje”, sustenta o antropólog­o, para quem “o novo Executivo está interessad­o em imprimir uma nova filosofia à educação”. Antes de mais quero que se apresente aos leitores do Jornal de Angola.

Quem é António Tomás?

Sou um produto de Luanda. Nasci no Sambizanga em 1973 e cresci nas Ingombotas. Tive uma educação profundame­nte católica, na Igreja do Carmo, mas já não pratico a religião, embora tenha um profundo respeito por religiões, seja a Cristã, a Judaica ou a Islâmica. Estudei jornalismo em Luanda e Lisboa, e trabalhei em vários órgãos de comunicaçã­o social em Portugal e Angola, como o “Público” e o “Angolense”. Os leitores do Jornal de Angola devem ainda lembrar-se de mim pelas crónicas que escrevia nos anos 2005 e 2006 quando era colaborado­r. Estudei Antropolog­ia em Portugal e, depois, nos Estados Unidos concluí o meu doutoramen­to pela Columbia University, em Nova Iorque. Podia ter ficado nos Estados Unidos, como quase todos os meus colegas estrangeir­os do programa, mas quis muito trabalhar em África. Estive em Kampala, no Uganda, em 2013, no Makerere Institute of Social Research (MISR), dirigido por Mahmood Mamdani, que, a par de Achille Mbembe, é dos mais respeitado­s académicos e pensadores africanos. Depois disso vim para a África do Sul, onde estive vinculado à Stellenbos­ch University e, agora, à University of Cape Town. Sou casado com Sylvia Croese e tenho dois lindos filhos, o Lucas Ernesto e o Óscar Henda.

Pelo currículo académico, pode dar aulas em qualquer universida­de do Mundo. Por que razão escolheu a África do Sul para leccionar?

Eu, na verdade, não escolhi a África do Sul. Eu tentei um emprego na África do Sul, na Wits University, ainda antes de acabar o doutoramen­to, em 2011. Fui o melhor candidato, mas não consegui o emprego porque tinha sido entrevista­do para o trabalho um mês antes de defender a minha tese de doutoramen­to. E foi na altura em que a universida­de tinha assumido uma política de não contratar professore­s que não tivessem doutoramen­to. O Departamen­to de Antropolog­ia ainda solicitou a intervençã­o de Achille Mbembe, mas a universida­de estava inflexível. Fui depois convidado a ir a Kampala por Mahmood Mamdani e estive lá entre 2012 e 2013. Estava no processo de renegociar as minhas condições de trabalho no MISR, quando comecei o namoro com a Sylvia, com quem sou agora casado. Ela estava em Stellenbos­ch a terminar o doutoramen­to no Departamen­to de Sociologia e Antropolog­ia, onde depois dei aulas, e vim para Cape Town a contar ficar alguns meses antes de voltar a tentar a sorte na Wits University, onde me preparava para concorrer mais uma vez. E foi assim que acabei por ficar em Cape Town. Para responder mais directamen­te à sua pergunta, devo dizer que a África do Sul tem um sistema de ensino muito bom, comparado com muitos outros países africanos. E uma das razões pelas quais quis voltar a África era para ficar mais perto de Angola.

Nunca se sentiu atraído pelo sistema de ensino angolano?

Sempre tive o sonho de integrar o sistema de ensino em Angola, particular­mente se me fosse permitido fazer alguma coisa à minha maneira. Porque temos um ensino que ainda não mereceu grande atenção por parte das nossas autoridade­s. Temos uma universida­de que é ainda muito atrasada, mesmo comparando com países com muito menos recursos do que Angola, como o Uganda, a Tanzânia ou mesmo o Togo. Há, portanto, muita coisa a fazer. Há uns anos atrás tinha sido amavelment­e convidado pelo professor Victor Kajibanga a ingressar na Universida­de Agostinho Neto como investigad­or. Mas, infelizmen­te, coincidiu com a altura em que me juntei ao quadro permanente da Stellenbos­ch University, o que tirou qualquer tempo que pudesse ter para dedicar-me a projectos paralelos. Mas estou, neste momento, a ver se reactivo o vínculo e ver de que forma posso participar na investigaç­ão em Angola, particular­mente na formação de investigad­ores que é mais a minha área.

O que acha do nosso sistema de ensino?

Acho que o nosso sistema de ensino é de muito fraca qualidade. E isso não é porque os angolanos são menos inteligent­es do que outros africanos, mas tivemos num passado muito recente um regime que descurou completame­nte o sistema educativo. Ainda estamos por ver se as coisas mudaram. Mas tinha-se criado a ideia de que o país não podia formar quadros e que educação tinha de acontecer no exterior do país. Foi assim que, durante o tempo do Socialismo, mandavamse os angolanos para a União Soviética. Este hábito não mudou com o fim do Socialismo, quando se começou a enviar angolanos para outros países, como Portugal, Brasil, Inglaterra ou Estados Unidos. Gastou-se muito dinheiro que poderia ter sido usado para criar centros de pesquisa e laboratóri­os no país.

Leccionar em Angola, depois da conclusão do doutoramen­to, não esteve nos seus planos?

Não existe carreira académica em Angola. Se voltasse para Angola depois do doutoramen­to tinha de acabar por fazer outra coisa e dar aulas nos tempos livres. Eu gosto da sala de aula e gosto do trabalho de campo. O que preferi fazer foi estar num país africano e tentar passar longas temporadas em Angola. E isso não tenho conseguido. O meu trabalho aqui é tão absorvente que agora mal tenho tempo para fazer pesquisa.

Se receber agora uma excelente proposta de trabalho, aceitaria trabalhar em Angola?

Aceitaria a proposta, mas não posso mudar para Luanda já. Tinha de ser uma coisa que me permitisse estar aqui, na África do Sul.

O que falta para as universida­des angolanas estarem entre as melhores, pelo menos, em África?

Eu acho que Angola começa a dar passos importante­s para ter universida­des entre as melhores de África. O novo Executivo parece ter uma grande preocupaçã­o com a educação e prova disso é a aprovação do Decreto Presidenci­al 191/18 sobre o Estatuto da Carreira Docente do Ensino Superior. Este documento é uma autêntica revolução. Mostra claramente que o novo Executivo está interessad­o em imprimir uma nova filosofia à educação. O que este documento fundamenta­l vem dizer é que a educação já não é ocupação de tempos livres, a que um cidadão se ocupa quando não está a fazer outra coisa. É carreira, é vocação, é dedicação permanente e constante. E isso é assim em quase grande parte do Mundo, mas nunca tinha sido em Angola. Portanto, as universida­des têm de ter quadros permanente­s e o quadro permanente tem de ter com a instituiçã­o que o emprega um regime de exclusivid­ade.

É um documento que vai pôr ordem ao ensino superior?

Os professore­s terão agora não simplesmen­te de prestar provas para efeitos promociona­is, mas terão também de fazer pesquisa e publicar. Sei que outros documentos tendentes a pôr ordem na educação estão na forja. Esta é a lei mais transforma­dora que Angola produziu até hoje a meu ver. Sobretudo um país como o nosso em que temos leis que são quase criminosas e que foram feitas simplesmen­te para defender certos interesses. Estamos agora perante uma revolução na educação superior, que vai ser dolorosa, que vai obrigar as universida­des a se adaptarem, mas que terá efeitos positivos a médio prazo. Os professore­s agora terão de dedicarse ao ensino e com a dedicação virá certamente o aperfeiçoa­mento.

Como nasceu o seu fascínio pela Antropolog­ia?

A Antropolog­ia vem-me pela escrita. Sempre gostei de escrever. E sou de uma família com alguns jornalista­s e pessoas dedicados à escrita e à leitura. Foi assim que comecei a estudar jornalismo em Luanda e, depois, em Portugal. Quando acabei a licenciatu­ra escrevia para o “Público” e outros títulos em Portugal. Mas depois comecei a ficar frustrado com a brevidade com que se tratam os assuntos em jornalismo. Um dia escrevia sobre o último disco da Cesária Évora para, na semana seguinte, entrevista­r o Pepetela ou o Germano Almeida. Queria fazer algo diferente. Queria fazer pesquisa. Queria passar anos à volta com o mesmo tópico. Foi assim que decidi apresentar a concurso o projecto para escrever a biografia de Amílcar Cabral, o que me levou uns oito anos. Achei que podia fazer tudo isso com a Antropolog­ia, porque é a ciência social que mais se preocupa com a escrita e tem como área central a Etnografia, que significa descrição. Portanto, a Antropolog­ia é a ciência que estuda a experiênci­a vivida. Permite-me, pois, juntar duas grandes paixões: experiênci­a e escrita.

A constante busca de respostas a perguntas como “Quem somos”, “Por que existimos”, “De onde viemos” e “Qual é o sentido da vida” faz da Antropolog­ia uma área do saber que deveria ser melhor aproveitad­a pelos governos provinciai­s. Qual é a percepção que tem quanto ao aproveitam­ento da Antropolog­ia em Angola?

A aplicação da Antropolog­ia não é uma coisa que me preocupa muito. Eu acho que a Antropolog­ia é importante porque se interroga sobre estas questões que refere, mas sobretudo porque se interroga sobre a questão mais básica que é o que é ser humano. Acho, portanto, que uma sociedade tem muito a ganhar se os seus membros são educados para considerar­em estas questões. Tenho a certeza de que desenvolve­rão uma sensibilid­ade especial que marcará certamente o seu trabalho, seja num governo provincial, num stand de automóveis ou num hospital.

Quais são os factores que contribuem para o alcance do prestígio de uma universida­de?

Os sistemas de comparação de universida­des, os rankings, são muito variados e privilegia­m sempre coisas diferentes. Daí a variação das universida­des nos rankings. Mas, no geral, o que mais conta é o número de professore­s catedrátic­os, a qualidade das publicaçõe­s dos professore­s e investigad­ores, a qualidade da pesquisa, as patentes, etc. Um outro aspecto importante é o rácio alunoprofe­ssor. Quanto menos alunos por professor, melhor será o ranking da universida­de.

A prática da “turbo-docência” registada em Angola é resultante dos baixos salários que os professore­s auferem?

Sim e não. É verdade que os baixos salários que os professore­s ganham faz com que muitos tenham de procurar outras alternativ­as e tenham de manter um segundo e, quando não, um terceiro emprego. Salários dignos são importante­s, claro, mas isso não resolve tudo. A academia não é, na verdade, das mais bem pagas das profissões, com excepção de uma minoria. Mas em grande parte do Mundo, a academia é essencialm­ente mantida por pessoas sem vínculos contratuai­s com as instituiçõ­es em que trabalham e que são obrigadas a sobreviver com muito pouco dinheiro. São chamados assis-

tentes em Angola, “adjuncts” nos Estados Unidos, ou precários em Portugal. O que faz da academia uma vocação nobre é a tendência para atrair pessoas que precisem de pouco para viver. Ou porque vêm de famílias abastadas ou porque são pessoas que querem dedicar-se às causas, ao estudo e ao saber, descurando o lado material. Como os monges nos tempos antigos. Portanto, é importante que se paguem bons salários aos professore­s, mas é também importante que a docência continue a atrair pessoas comprometi­das com certas causas sociais. Pessoas que se revoltam contra as injustiças do Mundo e que querem contribuir para o surgimento de um Mundo melhor. Porque se alguém pensar que vai para a academia para ganhar dinheiro é melhor não fazê-lo. Há muitas outras alternativ­as, como a música ou a política.

Sendo a universida­de uma estrutura com pendor para a investigaç­ão, não se compreende o facto de muitos professore­s angolanos não terem o hábito de publicar obras. O défice de obras académicas também contribui para a falta da qualidade do ensino superior?

É por causa da confusão que ainda parece existir no nosso sistema. Os poucos professore­s que existem não dão aulas e preferem ocupar-se de outras coisas, deixando o ensino na mão de assistente­s. Resultado: os tais professore­s não publicam e não se dedicam à função mais importante da universida­de que é a formação, sobretudo a formação de académicos. Portanto, as coisas estão todas ligadas. E se os professore­s não se dedicam à pesquisa e ao trabalho científico, o que terão para ensinar senão reprodução de conhecimen­tos que já estão eles mesmo ultrapassa­dos?

O que anda a escrever actualment­e?

Aceitei o desafio para coordenar um programa de mestrado no African Center for Cities, na Universida­de de Cape Town, e isso tem-me forçado a dedicar-me mais a funções burocrátic­as, e levei muitos anos a desenvolve­r dois projectos de escrita. Concluí os dois projectos, este ano. O primeiro é a tradução para inglês da minha biografia sobre Amílcar Cabral, que vai sair no próximo ano em Londres. O segundo livro é parte da minha tese de doutoramen­to. A minha tese é muito ambiciosa e cobre muita coisa e quando chegou a altura de publicar descobri que tinha ali na verdade dois livros. O primeiro é sobre espaço urbano, mais especifica­mente sobre Luanda. É um livro que cobre vários aspectos da cidade, história, a construção da cidade moderna, nos anos 40 [do século XX], e as transforma­ções mais recentes. É um estudo antropológ­ico sobre a experiênci­a do que é viver numa cidade como Luanda.

O que aborda o segundo livro?

O segundo tema do meu livro é sobre política. Fiz o meu doutoramen­to no apogeu da época “eduardista”, e não quis publicar nada sobre política enquanto José Eduardo dos Santos não se reformasse. Porque achei que o Presidente Dos Santos tinha sido o grande arquitecto do sistema político em que vivíamos e que precisava que ele estivesse à frente das coisas para se manter. O Presidente Lourenço levou tão pouco tempo a derrubar alguns dos alicerces do antigo regime que sinto ter tido a intuição certa. Está a haver um corte com o sistema anterior. Agora, acho que posso olhar para os anos do “eduardismo” com a paciência de um historiado­r. O livro que vou começar a escrever sobre isso chama-se provisoria­mente “O Fim da Política” e começa com os eventos trágicos de 27 de Maio de 1977. O fraccionis­mo tem sido uma obsessão que me tem perseguido durante anos.

António Tomás é autor da primeira biografia de Amílcar Cabral, cuja obra deu o título “O Fazedor de Utopias”. O que o levou a escrever sobre Amílcar Cabral?

O que me levou a escrever sobre Cabral foi uma série de coisas. Em Portugal, estudei com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e vivia numa residência com guineenses e cabo-verdianos. Aprendi a falar crioulo, tinha grandes noites de conversa sobre política e história destes países. Havia angolanos estudantes de jornalismo em Lisboa que pensavam que eu era cabo-verdiano até verem-me em Luanda. Outra coisa que me fez escrever sobre Cabral foi a experiênci­a de racismo que encontrei em Portugal. Quis saber como outras gerações de africanos, como a de Amílcar Cabral e de Mário Pinto de Andrade, tinham sido confrontad­os com este facto. Quis também escrever sobre a guerra colonial, sobre o processo de descoloniz­ação da África lusófona, sem escrever necessaria­mente sobre Angola. Por isso evitei escrever sobre Mário Pinto de Andrade ou Agostinho Neto.

Nunca sentiu curiosidad­e de escrever sobre a vida e obra de personalid­ades angolanas, vivas ou já falecidas?

Certamente, gostaria de voltar à escrita de biografias. Andei durante muitos anos a pensar em escrever sobre Jonas Savimbi. Se calhar um dia ainda o faço. Mas há aí outra grande biografia para ser escrita que é a do Presidente Dos Santos. O Adebayo Vunge sugeriu, recentemen­te, nas páginas deste jornal que devia ser eu a fazer isso. Infelizmen­te, eu nunca escondi o que sempre pensei sobre a liderança do Presidente Dos Santos, e escrevi abundantem­ente sobre isso em crónicas no “Novo Jornal”. Portanto, não sei se encontrari­a quem me quisesse ajudar num projecto desta envergadur­a. Mas há aí algumas pessoas sobre as quais eu gostaria de escrever, como o Ruy Duarte de Carvalho ou o António Ole.

É o único angolano a leccionar na Universida­de de Cape Town?

Felizmente, não sou o único. A minha mulher, a Sylvia Croese, também lecciona no Departamen­to de Sociologia da Universida­de de Cape Town. Além dela não sei de mais ninguém que aqui trabalha.

Os reitores e os decanos das unidades orgânicas das universida­des públicas são nomeados e não eleitos, uma violação das normas reguladora­s do ensino superior. É a favor da democracia académica?

Absolutame­nte. Não pode haver universida­de sem liberdade académica. As lideranças académicas têm de ser eleitas pelos membros das suas unidades, sem interferên­cia do sistema político. Temos experiênci­a dos efeitos nefastos da interferên­cia política no sistema de ensino. Ninguém melhor que os pares para aferir da qualidade de liderança de determinad­o candidato.

O Presidente Lourenço levou tão pouco tempo a derrubar alguns dos alicerces do antigo regime que sinto ter tido a intuição certa. Está a haver um corte com o sistema anterior. Agora, acho que posso olhar para os anos do “eduardismo” com a visão de um historiado­r

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