Ilustre cidadão do mundo
Deve o nome a um dia da semana. Para o povo ashanti é habitual atribuir-se aos rapazes o nome do dia em que vieram ao mundo. Nessa sexta-feira, 8 de Abril de 1938, nasceu em Kumasi, na então denominada Costa do Ouro, um membro da nobreza local. A condição de integrante de família aristocrática possibilitou o acesso a um internato reservado à classe alta e à Universidade de Ciência e Tecnologia de Kumasi. Aos 20 anos recebeu uma bolsa para prosseguir a formação no College Minnesota nos Estados Unidos da América. Depois rumou para Genebra, na Suíça, onde terminou os estudos. Nessa cidade ingressou na Organização das Nações Unidas (ONU), dando início ao riquíssimo percurso que o projectou para o topo da diplomacia mundial. Kofi Annan sobressai entre as figuras de maior relevo mundial quando se trata de diplomacia, pacifismo, direitos e relações humanas. Este insigne filho de África partiu para a eternidade sábado último. Deixou em choque os familiares na sua terra natal, que precisaram de reconfirmar a informação para afastar o espectro das famigeradas “fake news”.
Secretário-Geral das Nações Unidas entre 1997 e 2007, Kofi Annan faleceu num hospital situado na parte alemã da Suíça. Nana, a esposa, e os filhos, Ama, Kojo e Nina acompanham os últimos dias da sua jornada na terra. O Ghana decretou uma semana de luto oficial em homenagem a um dos seus mais “ilustres compatriotas”, parafraseando o Presidente Nana Akufo-Addo. Por se tratar de um membro da nobreza, o funeral de Kofi Annan carece da concertação entre o Estado, familiares e as vozes autorizadas da aristocracia do seu povo, em Kumasi, capital do reino Ashanti, conhecido pela rica história, pelo ouro e pela mitologia. Annan é também um prominente cidadão do mundo, enaltecido pelos principais líderes à escala global. António Guterres, SG da ONU, considera-o “uma força que guiava o bem”. Jean-Claude Juncker sublinha que o maior reconhecimento a Annan “é preservar o seu legado e o seu espírito”, Vladimir Putin diz que sempre admirou a sua “sabedoria e coragem”, enquanto Angela Merckel se mostra entristecida pela morte do “homem de Estado excepcional ao serviço da humanidade”.
Ele tinha o “olhar tranquilo e decidido”, descreve Emmanuel Macron. Pedro Sanchez, Presidente do Governo espanhol, destaca o “legado para continuarmos a trabalhar pela paz e segurança”. Era, na óptica de Cyril Ramaphosa um “grande líder e diplomata extraordinário” que “hasteou a bandeira da paz em todo do mundo”. A humanidade curva-se perante a memória do ser humano com “voz de grande autoridade e sabedoria, em público e em privado”, destacada pelo grupo The Elders (idosos ou sábios), fundado por Nelson Mandela, Kofi Annan, Jimmy Carter, Fernando Henrique Cardoso e outras entidades para promover a paz e os direitos humanos.
Primeiro Secretário Geral eleito dentre os funcionários de carreira da ONU, introduziu o programa de reforma intitulado “Renovar as Nações Unidas”, cuja implementação ainda está em curso.
Foi distinguido com o Prémio Nobel da Paz em 2001, juntamente com a ONU, por ter dado uma nova vida à organização, de acordo com o Comité Nobel. A criação do Fundo Global de Luta contra a SIDA, Tuberculose e Malária vocacionado a ajudar os países em desenvolvimento e o papel de liderança na mobilização da comunidade internacional no combate a esses flagelos foram determinantes para a escolha. O diplomata envolveu-se directamente em negociações que resultaram na independência de Timor-Leste, país onde é lembrado com particular reverência. A dedicação a questões de segurança, causas humanitárias e ao encurtar das assimetrias no desequilíbrio planeta terra adensaram a folha de serviços do homem nascido numa sexta-feira.
A sua acção nem sempre sempre gerou consensos. Confrontou-se com crises políticas e humanitárias, regimes ditatoriais, conflitos em África, tragédias em Darfur e tsunamis no sentido literal do termo. A ameaça global configurada pelo terrorismo começou a intensificar-se. Afirmou-se ao longo do mandato como diplomata invulgar. “Um porta-voz do mundo, quase uma espécie de papa secular”, caracterizado por Edward Luck, professor da Universidade de Columbia e especialista na história da ONU citado no artigo “A despedida do maior diplomata do mundo” publicado pelo jornal português Público em Dezembro de 2006.
A autobiografia de Kofi Annan faz menção a fracassos. O genocídio do Rwanda e a guerra da Bósnia marcaram-no profundamente. Os dois acontecimentos devastadores foram registados enquanto chefiava o departamento de Manutenção de paz da ONU. A partir daí assumiu o que considerou desafio maior na condição de líder mundial: “fazer as pessoas entenderem a necessidade de intervenção em caso de flagrante violação dos direitos humanos”. Os eventuais fracassos do ilustre cidadão do mundo do qual nos despedimos não ofuscam o exemplo de vida. Orgulhosamente, associamos o nome Kofi Annan a boas memórias num continente órfão de lideranças.