Importância dos municípios
Segundo o ponto de vista de Herculano, o municipalismo desempenhou historicamente pelo menos sete funções principais, intimamente interligadas umas nas outras: 1) o triunfo do princípio da liberdade; 2) a emancipação das classes trabalhadoras; 3) a luta contra as classes privilegiadas; 4) a aliança com o poder régio; 5) a organização e desenvolvimento do poder local; 6) a administração e defesa do país real ; e 7) a garantia da independência nacional. Herculano apontou claramente os dois princípios que se têm digladiado ao longo da história humana : a liberdade contra a desigualdade. A criação e expansão do municipalismo é o índice mais evidente da vitória da liberdade contra as forças retrógradas que defendiam então as desigualdades e a permanência do statu quo. A resistência surda, durante séculos , dos trabalhadores contra os senhores originou, pouco antes do início da nacionalidade, a constituição dos municípios onde aqueles estavam seguros dos vexames e exigências dos privilegiados. Os concelhos instituídos são, no dizer de Herculano : “associações do homem de trabalho contra os poderosos, contra a manifestação violenta e absoluta do princípio da desigualdade, contra a anulação da liberdade das maiorias”. O municipalismo prova à evidência que a “história encerra um protesto perene da liberdade contra a desigualdade” . Na perspectiva herculiana, o municipalismo é um sistema de administração que evitará a ditadura de um indivíduo ou de uma classe. Usando as suas próprias palavras, uma reforma administrativa assente na estrutura municipal , restaurada e adaptada a necessidades modernas, evitará “o despotismo de um só, ou o predomínio tirânico das oligarquias da inteligência, da audácia e da riqueza.”
A segunda função dos municípios medievais foi proporcionar a ascensão das classes populares, mantidas até então numa menoridade política, social e económica, por efeito do predomínio quase exclusivo dos membros da nobreza e do clero. O povo, desde o servo da gleba ao agricultor, nada era diante dos instintos dos grandes senhores que viviam do suor de quem trabalhava. Herculano escreveu: “os municípios se instituíram e obtiveram garantias mais sólidas e importantes contra a prepotência da nobreza e do clero, ao passo que progredia a libertação do homem de trabalho”.
Há uma circularidade de influências entre a luta de classes na idade média e a criação dos concelhos. Estes aparecem como causa e, simultaneamente, efeito da libertação popular em luta contra os privilegiados e ociosos.
Afirma Herculano : “influindo a existência dos municípios nessa libertação, a robustez moral e material, que por benefício dela o povo adquiria, vinha de novo dar forças às tendências para o estabelecimento dos concelhos. Os dois factos exerciam assim entre si uma acção mútua” . Sem ser marxista, Herculano reconhece voluntariamente que a proliferação de municípios revela directamente da luta de classes.
A terceira função do municipalismo, em íntima conexão com as anteriores, diz respeito ao seu papel na luta do terceiro Estado (apoiado pelos reis) contra as duas grandes classes sociais preponderantes. A difusão em tão grande abundância dos municípios por todo o país transformou estes organismos de poder local em agentes aceleradores da marcha da história ( em termos reformistas, entenda-se): contendo e opondo -se aos abusos, extorsões e regalias de que usufruiam habitualmente as classes privilegiadas. A quarta função importante da instituição municipal, historicamente falando, diz respeito à aliança contraída entre o poder régio e os concelhos. Esta aliança estratégica entre o vértice e a base da pirâmide social só se explica porque havia interesses legítimos a acautelar por ambas as partes , em face dos inimigos comuns : o clero e a nobreza. No sentido de enfraquecer o poderio e de abater o orgulho destas duas classes, o rei e a organização municipal apoiavam-se mutuamente, de modo particular quando se reuniam em cortes. A lenta e segura ascensão do povo ( que veio a dar a burguesia na idade Moderna), é expressa por Herculano - historiador do terceiro Estado - : “desprezados, sujeitos a brutais violências, vão-se lentamente vigorando. Unidos à Monarquia e a monarquia a eles por conveniência ou antes por necessidade comum, a municipalidade renasce dessa união, e por ela a população inferior começa a resistir à violência e à ilegalidade, até chegar não só a repelir a força com a força, mas tam- bém a converter-se numa entidade politica”. Herculano explica bem as vantagens mútuas para ambos os aliados. Os habitantes dos concelhos obtinham a liberdade de se autogovernarem, de ficarem imunes da ingerência ou invasão dos nobres e ainda a certeza da posse perpétua e hereditária das suas propriedades. O rei alcançava também três benefícios : “fortalecer o povo como aliado da coroa contra as classes aristocráticas, e em especial contra o clero; a necessidade de criar uma fonte de rendimentos que compensasse o desbarato dos bens da coroa”. A quinta função do municipalismo, aliás a razão de ser actual é, precisamente : a organização e desenvolvimento do poder local. Desde a sua origem, os municípios promoveram o povoamento e bem estar das suas regiões, sendo verdadeiros dinamizadores do desenvolvimento económico, do equilíbrio social e da igualdade jurídica. Os dois princípios reguladores da vida interna e externa dos municípios foram: dum lado, a autonomia administrativa e a independência, relativamente à cobrança de impostos e as sentenças dos tribunais dos senhores: por outro lado, a divisão dos poderes e a divisão de tarefas confiadas a pessoas diferentes, evitando assim colisões ou interferências geradoras de mal - estar. Em 1853,Herculano escreveu: “o municipalismo (...) nos oferece o único meio possível de mantermos a nacionalidade, ao passo que seria o mais poderoso instrumento de uma liberdade verdadeira, convertendo o governo representativo, de uma imensa decepção, numa realidade prática”. O municipalismo Herculano não pretende substituir e anular o poder central do Estado, mas tão somente fazer com que ele não destrua a individualidade de cada região nem inutilize as suas potencialidades, esterelizando as iniciativas locais. E mais o município deve conservar intacta a sua individualidade na nação, e os povos não devem ser absorvidos (...) por isso , quando as individualidades desaparecem pelo sistema de centralização, que coloca todo o poder em uma só autoridade central, desprezando a liberdade de acção nos graus inferiores, o progresso do povo é impossível ” . A administração deve ser revigorada e obedecer a este princípio basilar, formulado deste modo por Herculano : “A administração da localidade pela localidade deve chegar até o último limite em que não repugna ao direito das outras localidades constituídas uniformemente. A administração central abrange tudo o que fica além desses limites no regimen prático da sociedade”.
A sexta função do municipalismo herculaniano decorre directamente do que fica dito, isto é, organiza ao nível das autarquias locais a descentralização do poder central, tornando viável o “governo do país pelo país”. A descentralização é a condição sine qua non para a democracia económica, social e cultural. “Quem diz descentralização, diz municipalismo : são coisas que se não separam. O municipalismo é a fórmula única da descentralização; sem ele esta seria dissolução e anarquia ”. Ao invés, a concentração da vida política na capital , efeito inevitável da centralização, é definida assim por Herculano : “é a tirania, é o escárnio do governo representativo, é o poder mefistofélico que converte a liberdade em falsa miragem” . Meia dúzia de linhas abaixo, condena a democracia que assenta no centralismo estatal exagerado : “a democracia centralista é uma coisa alheia às populações; que se contentar de as dominar pelo exército e pelo imposto sem curar da vida pública local”. O municipalismo é visto como o meio ideal para se operar a necessária descentralização do país, mas Herculano não é tão fanático que esqueça a existência e a conveniência de órgãos de soberania supra municipais.
“O princípio municipal é um entre os muitos que regem a sociedade. Julgamo-lo único? ”.
A sétima grande função que Herculano atribui ao municipalismo consiste na defesa da independência do país e a reforma municipalista o ideal instrumento para se acabar com as assimetrias regionais confiando ao país a sua administração e a defesa dos seus valores é o lema herculaniano.
Parafraseando o grande Garrett : “a liberdade verdadeira, o regimen do país pelo país (...) sem repetir inúteis e tormentosas experiências, só se realizará pela descentralização administrativa e por uma forte organização municipal ; utopia horrenda para todos aqueles que sabem achar na concentração do poder , quando lhes cai nas mãos, incógnitas doçuras, bem diversas dos martírios de que certos utopistas supõem esse poder rodeado”.