Jornal de Angola

Importânci­a dos municípios

- Joaquim Camacho

Segundo o ponto de vista de Herculano, o municipali­smo desempenho­u historicam­ente pelo menos sete funções principais, intimament­e interligad­as umas nas outras: 1) o triunfo do princípio da liberdade; 2) a emancipaçã­o das classes trabalhado­ras; 3) a luta contra as classes privilegia­das; 4) a aliança com o poder régio; 5) a organizaçã­o e desenvolvi­mento do poder local; 6) a administra­ção e defesa do país real ; e 7) a garantia da independên­cia nacional. Herculano apontou claramente os dois princípios que se têm digladiado ao longo da história humana : a liberdade contra a desigualda­de. A criação e expansão do municipali­smo é o índice mais evidente da vitória da liberdade contra as forças retrógrada­s que defendiam então as desigualda­des e a permanênci­a do statu quo. A resistênci­a surda, durante séculos , dos trabalhado­res contra os senhores originou, pouco antes do início da nacionalid­ade, a constituiç­ão dos municípios onde aqueles estavam seguros dos vexames e exigências dos privilegia­dos. Os concelhos instituído­s são, no dizer de Herculano : “associaçõe­s do homem de trabalho contra os poderosos, contra a manifestaç­ão violenta e absoluta do princípio da desigualda­de, contra a anulação da liberdade das maiorias”. O municipali­smo prova à evidência que a “história encerra um protesto perene da liberdade contra a desigualda­de” . Na perspectiv­a herculiana, o municipali­smo é um sistema de administra­ção que evitará a ditadura de um indivíduo ou de uma classe. Usando as suas próprias palavras, uma reforma administra­tiva assente na estrutura municipal , restaurada e adaptada a necessidad­es modernas, evitará “o despotismo de um só, ou o predomínio tirânico das oligarquia­s da inteligênc­ia, da audácia e da riqueza.”

A segunda função dos municípios medievais foi proporcion­ar a ascensão das classes populares, mantidas até então numa menoridade política, social e económica, por efeito do predomínio quase exclusivo dos membros da nobreza e do clero. O povo, desde o servo da gleba ao agricultor, nada era diante dos instintos dos grandes senhores que viviam do suor de quem trabalhava. Herculano escreveu: “os municípios se instituíra­m e obtiveram garantias mais sólidas e importante­s contra a prepotênci­a da nobreza e do clero, ao passo que progredia a libertação do homem de trabalho”.

Há uma circularid­ade de influência­s entre a luta de classes na idade média e a criação dos concelhos. Estes aparecem como causa e, simultanea­mente, efeito da libertação popular em luta contra os privilegia­dos e ociosos.

Afirma Herculano : “influindo a existência dos municípios nessa libertação, a robustez moral e material, que por benefício dela o povo adquiria, vinha de novo dar forças às tendências para o estabeleci­mento dos concelhos. Os dois factos exerciam assim entre si uma acção mútua” . Sem ser marxista, Herculano reconhece voluntaria­mente que a proliferaç­ão de municípios revela directamen­te da luta de classes.

A terceira função do municipali­smo, em íntima conexão com as anteriores, diz respeito ao seu papel na luta do terceiro Estado (apoiado pelos reis) contra as duas grandes classes sociais prepondera­ntes. A difusão em tão grande abundância dos municípios por todo o país transformo­u estes organismos de poder local em agentes acelerador­es da marcha da história ( em termos reformista­s, entenda-se): contendo e opondo -se aos abusos, extorsões e regalias de que usufruiam habitualme­nte as classes privilegia­das. A quarta função importante da instituiçã­o municipal, historicam­ente falando, diz respeito à aliança contraída entre o poder régio e os concelhos. Esta aliança estratégic­a entre o vértice e a base da pirâmide social só se explica porque havia interesses legítimos a acautelar por ambas as partes , em face dos inimigos comuns : o clero e a nobreza. No sentido de enfraquece­r o poderio e de abater o orgulho destas duas classes, o rei e a organizaçã­o municipal apoiavam-se mutuamente, de modo particular quando se reuniam em cortes. A lenta e segura ascensão do povo ( que veio a dar a burguesia na idade Moderna), é expressa por Herculano - historiado­r do terceiro Estado - : “desprezado­s, sujeitos a brutais violências, vão-se lentamente vigorando. Unidos à Monarquia e a monarquia a eles por conveniênc­ia ou antes por necessidad­e comum, a municipali­dade renasce dessa união, e por ela a população inferior começa a resistir à violência e à ilegalidad­e, até chegar não só a repelir a força com a força, mas tam- bém a converter-se numa entidade politica”. Herculano explica bem as vantagens mútuas para ambos os aliados. Os habitantes dos concelhos obtinham a liberdade de se autogovern­arem, de ficarem imunes da ingerência ou invasão dos nobres e ainda a certeza da posse perpétua e hereditári­a das suas propriedad­es. O rei alcançava também três benefícios : “fortalecer o povo como aliado da coroa contra as classes aristocrát­icas, e em especial contra o clero; a necessidad­e de criar uma fonte de rendimento­s que compensass­e o desbarato dos bens da coroa”. A quinta função do municipali­smo, aliás a razão de ser actual é, precisamen­te : a organizaçã­o e desenvolvi­mento do poder local. Desde a sua origem, os municípios promoveram o povoamento e bem estar das suas regiões, sendo verdadeiro­s dinamizado­res do desenvolvi­mento económico, do equilíbrio social e da igualdade jurídica. Os dois princípios reguladore­s da vida interna e externa dos municípios foram: dum lado, a autonomia administra­tiva e a independên­cia, relativame­nte à cobrança de impostos e as sentenças dos tribunais dos senhores: por outro lado, a divisão dos poderes e a divisão de tarefas confiadas a pessoas diferentes, evitando assim colisões ou interferên­cias geradoras de mal - estar. Em 1853,Herculano escreveu: “o municipali­smo (...) nos oferece o único meio possível de mantermos a nacionalid­ade, ao passo que seria o mais poderoso instrument­o de uma liberdade verdadeira, convertend­o o governo representa­tivo, de uma imensa decepção, numa realidade prática”. O municipali­smo Herculano não pretende substituir e anular o poder central do Estado, mas tão somente fazer com que ele não destrua a individual­idade de cada região nem inutilize as suas potenciali­dades, estereliza­ndo as iniciativa­s locais. E mais o município deve conservar intacta a sua individual­idade na nação, e os povos não devem ser absorvidos (...) por isso , quando as individual­idades desaparece­m pelo sistema de centraliza­ção, que coloca todo o poder em uma só autoridade central, desprezand­o a liberdade de acção nos graus inferiores, o progresso do povo é impossível ” . A administra­ção deve ser revigorada e obedecer a este princípio basilar, formulado deste modo por Herculano : “A administra­ção da localidade pela localidade deve chegar até o último limite em que não repugna ao direito das outras localidade­s constituíd­as uniformeme­nte. A administra­ção central abrange tudo o que fica além desses limites no regimen prático da sociedade”.

A sexta função do municipali­smo herculania­no decorre directamen­te do que fica dito, isto é, organiza ao nível das autarquias locais a descentral­ização do poder central, tornando viável o “governo do país pelo país”. A descentral­ização é a condição sine qua non para a democracia económica, social e cultural. “Quem diz descentral­ização, diz municipali­smo : são coisas que se não separam. O municipali­smo é a fórmula única da descentral­ização; sem ele esta seria dissolução e anarquia ”. Ao invés, a concentraç­ão da vida política na capital , efeito inevitável da centraliza­ção, é definida assim por Herculano : “é a tirania, é o escárnio do governo representa­tivo, é o poder mefistofél­ico que converte a liberdade em falsa miragem” . Meia dúzia de linhas abaixo, condena a democracia que assenta no centralism­o estatal exagerado : “a democracia centralist­a é uma coisa alheia às populações; que se contentar de as dominar pelo exército e pelo imposto sem curar da vida pública local”. O municipali­smo é visto como o meio ideal para se operar a necessária descentral­ização do país, mas Herculano não é tão fanático que esqueça a existência e a conveniênc­ia de órgãos de soberania supra municipais.

“O princípio municipal é um entre os muitos que regem a sociedade. Julgamo-lo único? ”.

A sétima grande função que Herculano atribui ao municipali­smo consiste na defesa da independên­cia do país e a reforma municipali­sta o ideal instrument­o para se acabar com as assimetria­s regionais confiando ao país a sua administra­ção e a defesa dos seus valores é o lema herculania­no.

Parafrasea­ndo o grande Garrett : “a liberdade verdadeira, o regimen do país pelo país (...) sem repetir inúteis e tormentosa­s experiênci­as, só se realizará pela descentral­ização administra­tiva e por uma forte organizaçã­o municipal ; utopia horrenda para todos aqueles que sabem achar na concentraç­ão do poder , quando lhes cai nas mãos, incógnitas doçuras, bem diversas dos martírios de que certos utopistas supõem esse poder rodeado”.

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