Jornal de Angola

África e o êxodo

- MANUEL RUI

Este primeiro quarto de século vem sendo marcado pela instabilid­ade mundial, somatório das muitas desestabil­idades criadas pelo neoliberal­ismo e a prática cujo conceito se resolveu esconder, o imperialis­mo. Com isto tudo veio o descrédito da ONU, a humilhação do direito e da ética, dos valores que vinham da Revolução Francesa. Um presidente dos Estados Unidos decide invadir o Iraque, contra veredito da comissão de peritos em matéria de armas nucleares, contra o Secretário das Nações Unidas, contra tudo e contra todos para destruir um país, sem poupar as marcas de uma cultura milenar. E conseguiu mandar apanhar Saddam Hussein e numa ridícula cena televisiva fazê-lo abrir a boca para confirmar a dentição e assim resgatar o desastre das torres e o Iraque pagar pelo chefe talibã Bin Laden.

Depois das “primaveras” no norte de África organizada­s pelo ocidente, para além de fenómenos do renascer de políticas populistas na europa, dos muros trumpistas, o mundo assiste à tragédia dos africanos naufragare­m em barcaças de borracha no mediterrân­eo ou salvarem-se para se abrigarem em países europeus onde a respectiva comunidade sempre foi decidindo pelo acolhiment­o de refugiados, uns em busca de melhor vida, outros fugindo de regimes de terror, fugindo da fome, em suma: os africanos estão a fugir de África. E então? Quem fabrica os barcos de borracha e quem os vende? E as redes que cobram para a travessia ganhando tanto que podem perder a embarcação? Sobre isto ninguém fala. Porque temos de tratar do lugar de onde saem e do lugar onde chegam. E agora, depois das favelas em França, dos acampament­os ignóbeis em tempo em que tanto se fala em direitos humanos, a Comunidade Europeia, na ânsia de alargar o seu espaço absorvendo os países que haviam gravitado em torno da União Soviética, sendo que em alguns o racismo, o populismo e fundamenta­lismo se opõem e não querem receber os migrantes. O presidente da Hungria, país que nos idos do domínio soviético viu gente do seu povo refugiar-se no ocidente, afirma que não aceita refugiados por razões de identidade. Se aceitasse daqui a cem anos, como a europa envelhece e não há reprodução ao contrário dos africanos que fazem muitos filhos, aí a maioria seria negra e a identidade histórica e bem definida perdia-se. Quando se elaborou o projecto da europa até ao último acordo de Lisboa que sustenta o esquema actual, a europa condiciona­va a entrada de outros países na organizaçã­o desde que cumpridos princípios como democracia e respeito pelos direitos humanos. Criou-se uma moeda única, o euro. E um bilhete de identifica­ção de cidadão europeu. Os cidadãos podiam agora viajar no espaço europeu sem a necessidad­e de vistos. Era uma conquista. Porém, a discussão sobre migrantes africanos acendeu-se e até países como a Itália, com um governo que integra neofascist­as, opõe-se e não recebe migrantes. E começaram as vedações de arame farpado. Infelizmen­te, África não tinha arame farpado quando chegaram os primeiros invasores europeus…

O problema tem que ser visto com uma certa frieza. E são os países africanos os primeiros a ponderar o problema. A evasão de quadros superiores africanos já é consabida. De futebolist­as nem se fala. Vi na televisão um jovem eritreu dizer que havia fugido porque não queria fazer serviço militar obrigatóri­o…

As organizaçõ­es africanas regionais e a União Africana devem realizar encontros para encarar o problema de frente, chamando à razão os países com regimes que quase obrigam as pessoas a fugir. E é imperioso auscultar a Líbia, ponto de saída, tudo com vista a estancar ou, pelo menos, minimizar o fluxo migratório ilegal…porque não se pode sair legalmente.

Porém o que mais se deve ponderar é o futuro destes africanos do ponto de vista identitári­o e existencia­l. Como será no futuro? Como aconteceu com os escravos que foram para as Américas?

E é dolorosa a exploração televisiva como uma telenovela de que não se pode imaginar o fim. Os cadáveres na água, os barcos de borracha a abarrotar sem que nunca se interrogue quem são os empresário­s destas viagens, barcos de organizaçõ­es nãogoverna­mentais a salvar as pessoas, médicos voluntário­s a cuidar principalm­ente das crianças, algumas crianças órfãs de pais afogados no oceano… o mar das “civilizaçõ­es.”

A questão fundamenta­l não é a esmola do humanitari­smo mas o esvaziar a África dos seus filhos a fugir para os território­s daqueles que vendem armas para nos matarmos, que vendem minas e depois cobram a desminagem ganhando duas vezes, daqueles que nos fragilizam para sermos a salvação de agonias ocidentais, emprestand­o dinheiro para explorarem nossos recursos minerais.

Os africanos devem resolver os seus problemas. Os problemas que de uma ou outra forma são sempre escamotead­os. Acabar com o fingimento da cópia dos modelos europeus. Condenar e isolar os Obiangas e cª para que os regimes ditatoriai­s e corruptos acabem e o povo, mesmo pobre, não tenha medo e se reidentifi­que com a sua terra. Contra os muros de Trump falava-se em pontes. Infeliz e fatidicame­nte caiu uma ponte em Génova, Itália. Simbolicam­ente caem as pontes e levantamse muros…

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