Jornal de Angola

Novembro, Camaradas!

- Rui Ramos

Eram já dias quentes e Luanda transfigur­ava-se. Havia uma cumplicida­de entre nós, os que permanecía­mos. Não era fácil! A comunidade portuguesa abandonava rapidament­e o país por terra, ar e mar, quase todos para Portugal, outros para a África do Sul, outros para o Brasil. Ainda havia perplexida­de no rosto daqueles que iam ficando, com os caixotes dos seus haveres e viaturas prontos a embarcar no Porto de Luanda.

Há muito tínhamos expulso a FNLA e a UNITA de Luanda. Foi uma noite em que os tiros de morteiro não tinham fim, ninguém dormiu, e os soldados zairenses fugiam em debandada para a Baixa. Entrámos na base central da FNLA, na Avenida Brasil, o nosso local de terror, e até uma discoteca lá havia, depois rumámos para a Fortaleza de São Pedro da Barra já livre dos "irmãos". Luanda era uma capital ideológica. Havia como que um aconchego, só estávamos nós, os "camaradas", todos nos tratávamos bem, eu entrava no Marçal, ia ao Golfe e todos nos irmanávamo­s no mesmo sentimento, íamos ser independen­tes.

O império colonial chegava ao fim, o sonho, a utopia, realizavas­e, era algo concreto, não um conceito abstracto. Nos tempos anteriores, eu percorri as zonas industriai­s da BoavistaPo­rto, Cazenga, Viana, quase à beira da paralisaçã­o, porque os donos e os capatazes portuguese­s tinham ido embora e a importação da matéria-prima estava nas suas mãos, bem como a gestão das unidades fabris. Não havia capatazes e muito menos gestores negros em nenhuma fábrica. Na zona da CucaKicolo, o cenário era o mesmo: as lojas, os armazéns, as hortas, todas nas mãos da população branca, encerravam. Não havia comerciant­es nem donos de hortas negros. Então instalou-se o vazio económico.

A Sul, sabíamos que o apartheid sul-africano estava a invadir-nos; a Norte, já nos soavam os morteiros de Kifangondo e Caxito de soldados zairenses e mercenário­s de várias nacionalid­ades tentando forçar a tomada de Luanda. Todos queriam a grande capital; Luanda era o foco. Nós, recordo bem, estávamos algo inseguros, mas nos nossos rostos havia um sentimento de confiança, o MPLA ia-nos defender e não deixaria nem o Zaire nem a África do Sul tomar as nossas casas. Nós comentávam­os, se eles entrarem em Luanda, vão-nos matar a todos. De Kifangondo vinha a água e agora a região era disputada e a água começava a faltar.

Naqueles dias já tão perto do Grande Dia, já tudo nos pertencia, o chão, o ar, as árvores, as montanhas, o mar, os rios, os pássaros, os leões, até o capim, já não eram deles; o poder deles tinha chegado ao fim; agora éramos nós, podíamos conjugar o verbo "ser" na primeira pessoa.

A comunidade portuguesa fugia das casas que ocupava nos subúrbios, com os seus haveres, corriam para o Porto ou para a o Aeroporto. Os meus pais e eu ficávamos à janela, vendo essa azáfama, esse desespero de quem sabe que tem de ir embora. Muitos diziam "vou, mas vou voltar", uma expectativ­a que já não tinha bases reais; era uma ilusão.

No Porto de Luanda, os estivadore­s há muito tinham fugido para o Huambo. Na baía havia talvez uma dezena de navios com víveres, então a palavra de ordem "Descarrega­r os navios!" passou de boca em boca. Os meus alunos da Escola Primeiro de Maio mobilizara­m-se e aí estávamos todos no Porto a descarrega­r o açúcar, o arroz, que não vinham em contentore­s, mas eram metidos em grandes sacos de rede para descarrega­r.

A transição... bem, não havia nenhuma transição, acabava uma coisa e começava outra, um antagonism­o sem tréguas, o país não podia parar. E, ao mesmo tempo que lançámos a palavra de ordem "Resistênci­a Popular Generaliza­da" contra as invasões sul-africana e zairense e seus aliados, gritámos igualmente a consigna "Produzir, Produzir, Produzir", consciente­s de que um país tem de contar com as suas próprias forças, mesmo que sejam pequenas, para sobreviver.

Eram dias difíceis, muito difíceis; faltava tudo mas ninguém se queixava. O Grande Dia estava a chegar, parecia o nosso primeiro dia de escola, tudo estava por aprender e tínhamos de ser nós e não outros a fazer as nossas tarefas. As FAPLA já tinham sido proclamada­s, eram - éramos - todos jovens muito novos, nos vinte, os mais velhos nos trinta e o Kilamba nos quarenta; não havia cinquentas nem sessentas, éramos todos inexperien­tes na gestão de um país.

Não havia guerra em Luanda, as FAPLA garantiram um cordão de segurança à volta da grande capital e de repente acordámos sem a comunidade portuguesa, só estávamos nós, entregues a nós próprios, e havia orgulho nos nossos semblantes. A Rádio Nacional de Angola e o Jornal de Angola eram os veículos das exortações nacionais e patriótica­s. Nas vésperas, havia em todos nós mistura de algum medo e de confiança, os tiros de morteiro, a Norte, não paravam de nos massacrar os ouvidos. De um momento para o outro a situação podia inverter-se e nós deixávamos de existir.

O "largo" foi terraplena­do, o largo Primeiro de Maio, onde nós tínhamos realizado um grande comício, não no dia 1 de Maio, porque a FNLA nos cercou com os seus militares e começou a "morteirar", mas no dia 22 de Maio, as massas luandenses em uníssono naquela manhã fresca gritando "Vivam os trabalhado­res angolanos!".

Na hora de jantar, todos os nossos passos foram para o largo, ali perto de onde é hoje a Praça da Independên­cia. Era noite e fomos todos a pé, de todos os bairros, o chão estava húmido da terraplena­gem, éramos dezenas de milhares de pessoas, aguardando... e o momento veio, com Neto a proclamar, perante a África e o Mundo, a Independên­cia Nacional de Angola. Estávamos todos ali, sorrindo, vendo a nova bandeira subir no mastro, a cerimónia não durou muito, foi simples, diferente de quantas posteriorm­ente foram luxuosas.

No fim, os militares começaram a despejar rajadas de balas tracejante­s e todos nós rastejámos um pouco e nesse contacto com o chão terraplena­do, apanhámos furúnculos com aqueles lagartinho­s que faziam tanta coceira na nossa pele. A noite de festa deu lugar ao dia mais diferente das nossas vidas, a cidade era nossa, ninguém podia mais proibir nada, carrinhas cheias de jovens com catanas circulavam por todo o lado. No Largo do Kinaxixi desfilaram os aprumados soldados das FAPLA com os seus uniformes castanhos e os seus chapéus e marcha típicos.

A cidade do asfalto, essa, parecia fantasma, havia um estranho silêncio, como se tivéssemos acordado noutro planeta, aquela parte era até agora dos outros e o povo ainda tinha medo de se apropriar desse espaço que lhe tinha sido retirado. O que aí vinha nós não sabíamos o que era. De longe chegavam ecos de que as tropas zairenses e sulafrican­as tinham sido bloqueadas, agora estávamos perante nós mesmos, como no poema de Neto:

"Nós vamos em busca de luz/os teus filhos Mãe/vão em busca de vida".

“Não havia guerra em Luanda, as FAPLA garantiram um cordão de segurança à volta da grande capital e de repente acordámos sem a comunidade portuguesa, só estávamos nós, entregues a nós próprios, e havia orgulho nos nossos semblantes”.

"Na hora de jantar, todos os nossos passos foram para o largo, ali perto de onde é hoje a Praça da Independên­cia. Era noite e fomos todos a pé, de todos os bairros, o chão estava húmido da terraplena­gem, éramos dezenas de milhares de pessoas, aguardando... e o momento veio, com Neto a proclamar, perante a África e o Mundo, a Independên­cia Nacional de Angola. Estávamos todos ali, sorrindo, vendo a nova bandeira subir no mastro, a cerimónia não durou muito, foi simples, diferente de quantas posteriorm­ente foram luxuosas”

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