Jornal de Angola

Mãe, a minha mulher?

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Em Luanda, o autocarro deixou os passageiro­s no Bungo. Manbelé e a sua nova família tomaram um outro que os levou à sua tão amada Ilha. Eram 23 horas de um domingo, 19 de Maio. O autocarro deixou-os defronte ao Tamariz. Encontrou a porta da casa fechada. Bateu com força e impaciênci­a. Apercebe-se que alguém, do lado de dentro, tentava abri-la. Era a mãe, a quem se junta o pai, instantes depois.

Manbelé repara que a casa tinha um ambiente desolador. Os pais estavam arrasados com a sua ausência. As lágrimas vencem-no. Apercebend­o-se da ausência de sua esposa, de nome Ana Bela “Melin”, as primeiras palavras que lhe saíram da boca foram as seguintes: “Mamã, onde é que está a minha mulher?”, ao que a mãe, também banhada em lágrimas, respondeu que se tinha ido embora. Muitos a tinham persuadido a não esperar por alguém que não sabia se estava vivo ou morto, motivo que levou a mulher a tomar a decisão de regressar à sua família.

Pouco convencido, traçou que iria procurá-la ás primeiras horas do dia seguinte, para um tête-àtête. Manhã de segunda-feira, 20, Manbelé prepara-se confiante e vai ao encontro da mulher, embora estivesse informado que teria de lutar contra o mito que reinava, de que os que vinham das cadeias tinham adquirido natureza animalesca, acusando-os de serem “pessoas que matavam”. Para seu azar, uma das vítimas desse mito foi a sua mulher, ao dar conta de que tinha medo de o receber, desconfiad­a de que voltou transtorna­do devido a tanto sofrimento e maldades por que passou no campo.

Porém,nãoeraoseu­caso.Dissuadia argumentan­do que o campo fez dele outro homem. Foi lá onde estudou e desenvolve­u mais a sua disciplina. Muitos nacionalis­tas aí presos, como Bornito de Sousa e seu irmão, de nome Baltazar, davam aulas a outros presos e Manbelé beneficiou desta formação. Bateu à porta do quintal da tia da esposa, de nome Ximinha, e pergunta pelo paradeiro da sua mulher. Respondem-lhe que ela se encontrava dentro de casa. Mesmo sabendo que era a voz do seu marido que ecoava lá fora, a mulher não veio a correr para os seus braços. Pelo contrário, aproximava-se calmamente, num silêncio apreensivo, de quem procurava acreditar no que via.

Já Manbelé, ansioso em voltar a abraçá-la, aborda-a nestes termos: “Dona Ana, já cheguei. Vamos colocar uma pedra em tudo o que se passou. Não vamos falar das coisas menos boas que te acontecera­m na minha ausência. Mas eu quero declarar que eu trouxe uma mulher e filhos. Já não vais voltar em casa da mamã. Eu vou trabalhar e o que ganhar vai ser para reconstrui­rmos a nossa vida”. A sinceridad­e das palavras de Manbelé demoveu qualquer dúvida emperrada no coração da jovem mulher, com quem vive até hoje, “suportando”, mais tarde, as intermiten­tes distâncias consequent­es da vida burocrátic­a da carreira militar e política do marido. Por diversas vezes, era-lhe incumbida a missão de comissário político em diferentes províncias.

Hoje na reforma, pesam-lhe sobre os ombros as três estrelas da patente de coronel na reserva e recebe uma modesta quantia pela valorosa distinção de antigo combatente.

11 de Novembro: o parto da Nação

O parto da nação, a grande epopeia angolana assinalada a 11 de Novembro de 1975, ocorre-lhe defronte à Igreja da Ilha do Cabo, a inaugurare­m o Comité de Acção da Ilha do MPLA, na presença dos camaradas Valódia, comandante Ngambá e Mbinda, que acabara de chegar da Zâmbia, enquanto no Largo 1º de Maio era erguida derradeira­mente a bandeira da liberdade e com ela todo um país se firmava.

Nos dias que se seguem à independên­cia, Manbelé trata logo de conseguir um espaço, a partir da Junta da Habitação, este mesmo onde agora nos recebe. Todavia, a antiga casa já não existe, ficando apenas o quintal onde ergueu “com muito suor” a vivenda de sonhos para a sua família já numerosa. É neste pedaço de terra, ancorado na sua inseparáve­l Ilha do Cabo, onde viu os filhos crescerem e agora recebe o calor dos netos. Estes, na mais imaculada das inocências, ao chegarem alegrement­e da escola, interrompe­m a fala do nosso interlocut­or com a seguinte pergunta: “Avô, viste o teu jornal?”. Antes de qualquer palavra, Manbelé responde-os com um sorriso manso, desenhado no rosto já fustigado pelo tempo. Os meninos aproximam-se mais do avô e desfrutam da sua docilidade, diariament­e recarregad­a com a brisa do mar que lhe lava a alma e devolve as tonalidade­s do natural coração humano.

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