Jornal de Angola

Porque a peixeira...

- Osvaldo Gonçalves

O verbo “resgatar” anda na boca do mundo. Até virou objecto de paródia. Ouvimo-lo ser empregue no sentido de contrair uma dívida. Não no de se ver livre dela, mas de a assumir. Alguém perguntava a um amigo se não tinha certa quantia que lhe pudesse “resgatar”.

Talvez por, etimologic­amente, ter “origem questionáv­el” e ser de ampla aplicação, segundo cada contexto, desde libertar alguém do cativeiro, até conseguir algo de volta, passando por salvar alguém de um perigo e reparar uma culpa, o verbo “resgatar” e o seu substantiv­o masculino “resgate” estão a virar paus para toda a obra. Tudo por causa da grande operação anunciada pela Polícia Nacional.

Afinal, o que se pretende resgatar? Em princípio, tem de haver uma reposição de algo, seja material, seja imaterial. Mas, o que se teve e se perdeu, se, em boa verdade, desconhece-se o que quer que seja? A nossa sociedade atingiu tão elevado nível de deixaandar que qualquer cobrança parece descabida.

Menores vivem em casas alheias, sem o aval dos progenitor­es, sem ao menos os identifica­rem; filhos são registados por estrangeir­os, sem a mínima possibilid­ade de terem sido gerados por eles e sem passarem por qualquer processo de adopção; alvarás comerciais são trespassad­os a expatriado­s para a abertura de cantinas; avultadas quantidade­s de mercadoria entram pelos portos e aeroportos para depois serem vendidas sem o pagamento de impostos, enquanto se assiste a “moambeiro(a)s” erguerem impérios, a viverem no maior dos confortos e até na ostentação; funcionári­os públicos recebem dinheiro para agilizar o tratamento de documentos, a “gasosa” tornou-se uma forma de vida e causa estranheza quando não é cobrada; táxis funcionam durante anos apenas com documentos provisório­s...

Nas redes sociais, raparigas oferecem serviços de sexo, rapazes pedem “ajuda” para suprir falsas situações de extrema pobreza, ao mesmo tempo que postam imagem de momentos de descontrac­ção em ambientes requintado­s; incautos caem na lábia de falsos doutores que telefonam a dar conta de prémios interessan­tes que têm a receber, de sorteios em que nunca participar­am, mas que precisam de ser desalfande­gados e, para tal, têm de depositar certas quantias em dinheiro.

E quando alguém chega a querer pôr ordem em toda essa confusão, eis que surgem falsos moralistas a reclamarem porque alguém ficou sem poder alugar o seu compressor à recauchuta­gem do vizinho; porque alguém foi obrigado a fechar a janela onde se podia comprar cerveja, gasosa e cigarros durante toda a noite, num verdadeiro serviço de fubeiro sem precisar de qualquer documento.

Feitas as contas, são os próprios polícias, aqueles que deram o nome à operação, que se mostram confusos, que metem os pés pelas mãos, que atropelam as leis, que se embriagam de “gasosa” quando dizem estar a cumprir ordens superiores no âmbito desta.

A ideia demasiado ténue de que se pretende resgatar a autoridade do Estado carece, de início, que seja resgatada a própria noção de Estado. É preciso que cada um ganhe consciênci­a do seu papel enquanto cidadão, ainda que para tal precise de ser incentivad­o. Para isso, contam os órgãos de informação. Não só os públicos, mas também os privados. As redes sociais. É preciso que cada um se resgate a si mesmo.

Algumas repartiçõe­s públicas a até administra­ções municipais e comunais estão já a trabalhar nesse sentido. Merece aplausos a inciativa da Administra­ção da Ilha do Cabo, no cadastrame­nto dos vendedores ambulantes. Deveria ter começado pelas peixeiras. Registar toda a gente, obrigá-las a pagar taxas de exploração, a ter cartão de sanidade.

Numa coisa apostamos desde já: no dia em que chamarem as peixeiras para se registarem, vamos ter casa cheia. Elas vão lá todas bonitas, com os seus melhores trajes, porque peixeira é Mãe Grande, não é “mulher de se coçar”.

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