Porque a peixeira...
O verbo “resgatar” anda na boca do mundo. Até virou objecto de paródia. Ouvimo-lo ser empregue no sentido de contrair uma dívida. Não no de se ver livre dela, mas de a assumir. Alguém perguntava a um amigo se não tinha certa quantia que lhe pudesse “resgatar”.
Talvez por, etimologicamente, ter “origem questionável” e ser de ampla aplicação, segundo cada contexto, desde libertar alguém do cativeiro, até conseguir algo de volta, passando por salvar alguém de um perigo e reparar uma culpa, o verbo “resgatar” e o seu substantivo masculino “resgate” estão a virar paus para toda a obra. Tudo por causa da grande operação anunciada pela Polícia Nacional.
Afinal, o que se pretende resgatar? Em princípio, tem de haver uma reposição de algo, seja material, seja imaterial. Mas, o que se teve e se perdeu, se, em boa verdade, desconhece-se o que quer que seja? A nossa sociedade atingiu tão elevado nível de deixaandar que qualquer cobrança parece descabida.
Menores vivem em casas alheias, sem o aval dos progenitores, sem ao menos os identificarem; filhos são registados por estrangeiros, sem a mínima possibilidade de terem sido gerados por eles e sem passarem por qualquer processo de adopção; alvarás comerciais são trespassados a expatriados para a abertura de cantinas; avultadas quantidades de mercadoria entram pelos portos e aeroportos para depois serem vendidas sem o pagamento de impostos, enquanto se assiste a “moambeiro(a)s” erguerem impérios, a viverem no maior dos confortos e até na ostentação; funcionários públicos recebem dinheiro para agilizar o tratamento de documentos, a “gasosa” tornou-se uma forma de vida e causa estranheza quando não é cobrada; táxis funcionam durante anos apenas com documentos provisórios...
Nas redes sociais, raparigas oferecem serviços de sexo, rapazes pedem “ajuda” para suprir falsas situações de extrema pobreza, ao mesmo tempo que postam imagem de momentos de descontracção em ambientes requintados; incautos caem na lábia de falsos doutores que telefonam a dar conta de prémios interessantes que têm a receber, de sorteios em que nunca participaram, mas que precisam de ser desalfandegados e, para tal, têm de depositar certas quantias em dinheiro.
E quando alguém chega a querer pôr ordem em toda essa confusão, eis que surgem falsos moralistas a reclamarem porque alguém ficou sem poder alugar o seu compressor à recauchutagem do vizinho; porque alguém foi obrigado a fechar a janela onde se podia comprar cerveja, gasosa e cigarros durante toda a noite, num verdadeiro serviço de fubeiro sem precisar de qualquer documento.
Feitas as contas, são os próprios polícias, aqueles que deram o nome à operação, que se mostram confusos, que metem os pés pelas mãos, que atropelam as leis, que se embriagam de “gasosa” quando dizem estar a cumprir ordens superiores no âmbito desta.
A ideia demasiado ténue de que se pretende resgatar a autoridade do Estado carece, de início, que seja resgatada a própria noção de Estado. É preciso que cada um ganhe consciência do seu papel enquanto cidadão, ainda que para tal precise de ser incentivado. Para isso, contam os órgãos de informação. Não só os públicos, mas também os privados. As redes sociais. É preciso que cada um se resgate a si mesmo.
Algumas repartições públicas a até administrações municipais e comunais estão já a trabalhar nesse sentido. Merece aplausos a inciativa da Administração da Ilha do Cabo, no cadastramento dos vendedores ambulantes. Deveria ter começado pelas peixeiras. Registar toda a gente, obrigá-las a pagar taxas de exploração, a ter cartão de sanidade.
Numa coisa apostamos desde já: no dia em que chamarem as peixeiras para se registarem, vamos ter casa cheia. Elas vão lá todas bonitas, com os seus melhores trajes, porque peixeira é Mãe Grande, não é “mulher de se coçar”.