Jornal de Angola

Ler, escrever e contar

- Manuel Rui

Assim começava o Hino da Alfabetiza­ção que eu escrevera com música de meu xará Mingas. “Ler, escrever e contar, pôr pensamento na mão…” Outro dia, uma amiga psicóloga que viveu em Macau e a filha estudou na Suazilândi­a convenceu-me a ir a uma festa de escola para o 11 de Novembro porque professore­s e alunos queriam conhecer a pessoa que tinha escrito a letra do Hino Nacional. Era em Talatona, lugar também onde a minha conterras Maria João Ganga decidira dar o meu nome ao anfiteatro da sua Casa das Artes. Não gosto de Talatona porque me parece um apartheid onde o vizinho do andar de baixo não conhece o do andar de cima, com a propriedad­e na vertical, os condomínio­s que foram inventados por razões de segurança, aquele arame farpado sulafrican­o, bons tempos lá no Huambo, a janela do quarto tinha os vidros partidos, tudo isso me dá saudade das casas antigas com anexos, capoeira para galinhas, patos e horta. “Ó Rui vai à capoeira para te estrelar um ovo e matabichar­es,” assim falava minha mãe. Pois. A tal escola, ia eu no carro com o motorista que me mandaram buscar, falando política da net dos candonguei­ros, uma rede que um dia destes explico, que o povo andava a desconfiar porque tinham agarrado um carapau e os tubarões à solta, farteime de rir, a tal escola? Em Talatona devia ser como um desses institutos superiores num prédio de vários andares e tudo engravatad­o como eu já estive de camisa, boné e sandália. Nada. Tudo na horizontal, com caminhos e relva e as casas pareciam uma aldeia em maquete. Toda a gente se vestia de roupas africanas ou orientais. Era a Luanda Internatio­nal School. Uma angolana levou-me ao gabinete do director vestido com uma camisa de um pano que gira muito por Luanda, geometria a negro, vermelho e branco. Começou por me explicar a escola. O muadiê natural da Nova Zelândia parece mestiço de autóctone e eu falei no meu péssimo inglês que era para lá da Austrália e que eu só tinha comido jacaré na África do Sul, em Sun City, gargalhada, o móvel e as fotos da esposa ruiva, a filha e o namorado negro na cidade do Cabo. “Esta escola tem 52 nacionalid­ades.” E fiquei a saber que os de língua materna portuguesa, angolanos, portuguese­s ou brasileiro­s aprendiam em português mas tinham como língua segunda o inglês e os falantes de inglês tinham como língua segunda o português. Que ali, o principal era trocar corações para abrir as cabeças. Quem me dera que tivesse sido assim no meu tempo, pensei mas depois enxotei e deixa ficar a fisga, as palmatoada­s. Percorri biblioteca, salas de aulas para os mais pequenos, um escritor angolano de literatura infantil, Octaviano Correia contava estórias, a miudagem toda à vontade sem qualquer constrangi­mento, professore­s de calções e sandálias, tudo muito colorido, uma professora do Bangladesh, outra do Zimbabwe, falo-lhe naquele funje comido com as mãos e o molho de carne macia, ela abraça-me, ai, estava-me a adiantar, porque antes foi a abertura solene. Afinal, todos queriam conhecerme por causa da letra do hino. Num ginásio, cerca de duas mil pessoas. Subi ao palco com uma professora angolana. Eu disse versos em português, ela passava cada verso para o ouvido do director que declamava em inglês, depois um coral entoou o Angola Avante de uma maneira que escondi as lágrimas com a ponta dos dedos das mãos. E fizeram quizomba, tocaram guitarra e saxofone, cantaram blues, a escola era uma cidade onde eu desejaria morar, a cantina sem bebidas com açúcar e sal doseado, o funje de carne seca. Depois fui para uma aula. A professora portuguesa havia sido aluna de uma académica minha amiga e que escreve sobre a minha obra. Era a aula dos alunos da 12ª. Que à vontade, passou um slide com o “Quem me dera ser onda” em linguagem gráfica tratando a sistémica do texto na correspond­ência do sistema social da época. Perguntas e respostas. Substantiv­os, advérbios e verbos que eu escolhera passaram na tela. Depois eu escrevi o primeiro verso. Estávamos na escrita criativa e fizeram um poema de quatro estrofes. Maravilha de escola! Mas fiquei a pensar que nenhumas daqueles alunos serão capazes de agarrarem numa arma e fazerem como se vê na televisão. Ali eles aprendem a amar a vida dos homens, dos animais domésticos como cavalos e cães que todas as crianças gostam, dos animais selvagens e das plantas. Por causa dos corações e cabeças daquela escola. O curriculum é igual em todo o mundo com adaptações a cada país.

E os alunos quando saem da escola e vão para casa? Os que gostam de cães e cavalos e olham na rua os polícias a cavalo e com cães ameaçadore­s? Que voltas darão à cabeça e mais ainda quando chegam a casa e os pais colocam no canal das telenovela­s brasileira­s só com gente branca?

Ali eles aprendem a amar a vida dos homens, dos animais domésticos como cavalos e cães que todas as crianças gostam, dos animais selvagens e das plantas. Por causa dos corações e cabeças daquela escola

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EDIÇÕES NOVEMBRO
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