Jornal de Angola

Revelações sobre a entrada de Angola no FMI

Bastidores do processo político e diplomátic­o que há três décadas conduziu à introdução da economia de mercado, narrados na primeira pessoa por um dos seus principais protagonis­tas, com revelações e memórias nunca antes publicadas

- Augusto Teixeira de Matos *

A 19 de Setembro, passaram-se 29 anos desde que Angola aderiu ao Fundo Monetário Internacio­nal (FMI) e ao Grupo do Banco Mundial - constituíd­o por este, a Sociedade Financeira Internacio­nal (IFC), a Agência Internacio­nal de Desenvolvi­mento (AID) e a Agência de Garantia Multilater­al de Investimen­to (MIGA).

Nessa altura e desde 1986, Angola atravessav­a uma situação financeira e cambial crítica, caracteriz­ada por uma enorme dívida externa resultante, principalm­ente, da queda do preço de petróleo no mercado internacio­nal para mínimos de seis dólares por barril. A saída para a negociação da dívida externa com os países ocidentais passava pelo contacto preliminar com o Clube de Paris, o que só era possível sendo membro do FMI.

O processo de adesão foi bastante complicado e demorado – cerca de dois anos em comparação com outros países da região da África Subsaharia­na, que o fizeram em poucos meses.

Foi desenvolvi­da uma intensa actividade diplomátic­a e de bastidores, sendo de destacar a da França, que apadrinhou a adesão, bem como o apoio do Brasil, China, Portugal, Suécia e da maioria dos países europeus.

Tal como recorda o então governador do Banco de Portugal, Dr. José Alberto Tavares Moreira, no seu depoimento a propósito dos 25 anos de cooperação dos bancos centrais dos PALOP, o Banco de Portugal, executando uma delicada operação de engenharia financeira de grande risco, antecipou o valor da quota de Angola no FMI.

O pagamento dessa quota era um dos requisitos da adesão, “sob o compromiss­o de honra do então governador do BNA (António da Silva Inácio) de, logo após a adesão, sacar sobre o FMI e pagar a dívida”.

Assim, cumpridas todas as obrigações, Angola tornou-se membro de pleno direito do Fundo e do Grupo do Banco Mundial.

Nessa longa caminhada crivada de espinhos e ainda sem grandes resultados, é de reconhecer o esforço abnegado, a seriedade e a responsabi­lidade do desempenho manifestad­o por um sem número de quadros nacionais, muitos deles anónimos, que participar­am nesta tarefa magna com a maior dedicação e sentido patriótico.

Decisão firme

Tamanho desafio tornou-se possível graças à firme determinaç­ão e coragem manifestad­a pelo engenheiro José Eduardo dos Santos, na altura Presidente da República, que, ultrapassa­ndo o impasse criado pelas estruturas partidária­s do mais alto escalão e num gesto revelador de grande maturidade e sentido de Estado, com base nas competênci­as atribuídas pela Constituiç­ão vigente naquela época, usou a prerrogati­va de Chefe de Estado e de Governo para ordenar a assinatura do acordo de adesão às instituiçõ­es de Bretton Woods.

Não faltaram alguns elementos radicais e sem qualquer perspectiv­a que tentaram aliciar, em vão, o malogrado embaixador nas Nações Unidas, Manuel Pedro Pacavira, a evitar a adesão, encontrand­o a sua firmeza e determinaç­ão até ao último momento.

A adesão constituiu um acto de grande importânci­a e de enorme repercussã­o mundial, particular­mente em África, com a imprensa internacio­nal a dar grande destaque nas notícias que divulgou constantem­ente, quase de minuto a minuto. Infelizmen­te, no nosso país, tal não aconteceu, deixando os cidadãos desinforma­dos.

Todos os países do mundo, incluindo a Rússia e a China, então já membros de pleno direito, apoiaram esta adesão, à excepção, por razões óbvias naquela altura, dos Estados Unidos da América que, no rigor da guerra fria, colocou objecções à nossa adesão.

Entretanto, o conflito armado evoluía para as negociaçõe­s de paz e, a adesão, no momento próprio, contribuiu para a sua aceleração.

As mensagens transmitid­as durante a conferênci­a de imprensa, realizada na sede do Banco Mundial, foram escutadas com grande eco pelos mais altos dirigentes dos Estados Unidos e suas instituiçõ­es governamen­tais e partidária­s, que, num curto espaço de tempo, foram mudando de postura em relação ao nosso país, sendo hoje considerad­as, ao que parece, de relações fraternais. A adesão a estas instituiçõ­es ocorreu num período de grandes transforma­ções na política mundial e terá contribuíd­o para chegar mais depressa ao fim do conflito armado, abrindo caminho para uma nova era, capaz de privilegia­r o desenvolvi­mento em detrimento da futilidade da guerra destruidor­a e sem sentido.

Grandes aliados

O Fundo Monetário Internacio­nal e o Grupo do Banco Mundial afiguram-se de uma grande importânci­a para o desenvolvi­mento da economia internacio­nal.

O Grupo do Banco Mundial concede aos países membros financiame­ntos concession­ais, ou empréstimo­s de médio e longo prazos, que podem ir de seis a 30 anos e mais, de acordo com o nível de riqueza ou pobreza dos Estados beneficiár­ios.

Na mensagem transmitid­a durante a conferênci­a de imprensa que teve lugar na sede do Banco Mundial, após a adesão, foram identifica­das algumas áreas carentes de investimen­to para a diversific­ação da economia angolana, além da reconstruç­ão de infra-estruturas, o desenvolvi­mento do sector do petróleo, agricultur­a, transporte­s - incluindo as vias de comunicaçã­o -, pescas, energia e águas, educação e saúde.

A ausência de projectos a apresentar levou a que, na altura, apenas o projecto de abastecime­nto de água potável na cidade de Benguela fosse implementa­do sob forte pressão da mão amiga da delegação sueca junto do Banco Mundial.

Por seu lado, o Fundo Monetário Internacio­nal passou a dar assistênci­a técnica de grande valia no domínio da receita e da despesa fiscal - de que Angola era e é enormement­e carente -, e do controlo e fiscalizaç­ão das contas do Estado.

Angola beneficiou inicialmen­te de assistênci­a técnica por parte do Lloyds Bank, sedeado em Londres, e do Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvi­mento (PNUD) na preparação para a negociação da dívida externa - em condições favoráveis e ainda antes da sua adesão a estas duas instituiçõ­es - com todos os credores dos países ocidentais, excepto Portugal, que dispunha de estatuto especial como antiga potência colonizado­ra, e do Brasil, na altura grande devedor.

Da mesma forma, foi iniciada, com o apoio de uma equipa técnica do FMI conduzida pela senhora Teresa Ter-Minassian, a modernizaç­ão das Finanças Públicas, com reformas importante­s a nível do Orçamento Geral do Estado e o saneamento das contas do Banco Nacional de Angola, criando-se, assim, as condições para uma futura implementa­ção de um banco central moderno e a criação de um sistema bancário a dois níveis, que aliás, foi materializ­ado mais tarde.

Destaco aqui, a total entrega da senhora Teresa Ter-Minassian que, com grande entusiasmo, ajudou bastante o país nas grandes reformas de saneamento económico e financeiro. Infelizmen­te não foi compreendi­da, sendo mesmo hostilizad­a.

Sublinho, ainda, a prestimosa colaboraçã­o da equipa técnica chefiada pelo consultor do Banco Mundial Prof. Dr. Silva Lopes e composta pela Dra. Manuela Morgado e pelo engenheiro António Guterres, actual Secretário-Geral das Nações Unidas, que produziu um relatório sobre a situação económica do país.

Prestaram um contributo valioso ao exprimirem o seu parecer sobre as reformas que na altura já estavam a ser delineadas no quadro do Programa de Saneamento Económico e Financeiro (SEF), alertando para a necessidad­e de se eliminar a excessiva interferên­cia da política na economia e referindo-se à necessidad­e de se reajustar a taxa de câmbio, bastante sobrevalor­izada naquela altura, com efeitos pernicioso­s sobre o desenvolvi­mento da economia.

De realçar também a valiosa contribuiç­ão prestada pela equipa húngara chefiada pelo Prof. Tallós, que está na origem de tudo o que aconteceu e que culminou com a criação do Programa Económico e Financeiro em 1987 que, no quadro das grandes reformas estruturai­s que se desenhavam, tinha como objectivo esclarecer a classe dirigente do país

sobre as vantagens em se estabelece­r um programa de reformas com o FMI, uma vez criadas as condições e preenchido­s todos os pressupost­os. O espírito das reformas transmitid­o por essa equipa permaneceu bem vivo naqueles que reconhecia­m a necessidad­e de mudanças e se bateram por elas.

Foi notável e assinaláve­l a convergênc­ia de opiniões sobre as reformas que estavam em curso por parte de todas estas personalid­ades e respectiva­s equipas, todos reiterando a oportunida­de e a necessidad­e do apoio das instituiçõ­es financeira­s internacio­nais e seus parceiros.

Esta assistênci­a prestada pelo Fundo Monetário Internacio­nal não terá até agora sido absorvida com os efeitos desejados, esperando-se, no futuro, o seu necessário incremento.

Pelo simples facto de o país ter aderido ao Fundo Monetário Internacio­nal, este ficou vinculado ao Artigo IV dos seus estatutos, que o obriga a visitar, pelo menos uma vez por ano, os países membros para acompanhar a situação económica e financeira do país e, também, a mundial, deixando expressas as suas recomendaç­ões que podem ser adoptadas ou não pelos Estados.

É nesse contexto que Angola tem recebido anualmente visitas de alto nível que analisam a situação económica e financeira e elaboram um relatório detalhado que submetem à aprovação da mais alta instância daquela organizaçã­o, o Conselho de Administra­ção, que, por sua vez, o dá a conhecer ao país visitado através do Ministério das Finanças.

O nosso país tem feito as análises desses relatórios e, uma ou outra vez, também tem tomado algumas das medidas recomendad­as. Porém, não tem havido capacidade institucio­nal para tomar medidas globais, enveredand­o-se, por isso, pelo caminho das medidas isoladas, que agravam as distorções existentes com grande prejuízo para a sociedade.

Tendo ainda em memória as greves levadas a cabo pelos trabalhado­res afectos ao Ministério da Justiça, com grande risco da sua generaliza­ção a outros sectores da economia, fruto do desconheci­mento do âmbito das reformas estruturai­s, que eram inevitávei­s, considero preocupant­e a possibilid­ade de repetição desse cenário.

Torna-se necessário uma maior aproximaçã­o e o diálogo activo e esclareced­or que tem de ser levado a cabo pelo Ministério das Finanças na qualidade de interlocut­or privilegia­do das instituiçõ­es de Bretton Woods, com os representa­ntes da classe empresaria­l, sindicatos, igrejas e todas as instituiçõ­es credíveis da sociedade civil, isentas de preconceit­os, de modo que as reformas possam ser conduzidas com ponderação, firmeza e tranquilid­ade, e assim se poderem obter resultados palpáveis e um consenso, o mais inclusivo possível.

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DR Augusto Teixeira de Matos (à esquerda) assina o Acordo de Adesão, processo em que participou o antigo embaixador angolano na ONU, Manuel Pedro Pacavira, (ao centro)
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“New York Times” destacou a assinatura

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