Jornal de Angola

Ainda a maka dos hospitais

- Luísa Rogério

A recente greve dos médicos mantém em pauta a reflexão sobre o sector da saúde em Angola, item que oferece invariavel­mente um prato cheio para infindávei­s debates. Ainda assim, não esperava voltar à carga tão cedo. Depois de esgrimir opiniões perceptive­lmente favoráveis a um dos lados, achei correcto fazer outro tipo de incursão. Nada melhor do que a reportagem, o género jornalísti­co que congrega todos os outros, tendo como principal suporte os factos. Apurar, ouvir responsáve­is, trabalhado­res do ramo e, principalm­ente, os utentes do Serviço Nacional de Saúde é o caminho para radiografa­r de maneira realista o estado dos hospitais públicos de Luanda. Entretanto, como realçam os avisados seres que adoram citar trechos bíblicos, o homem não faz planos. Metaforica­mente, claro. Na verdade, mulheres e homens devem fazer planos, embora a execução não dependa sempre das vontades envolvidas. Estava a pensar na minha pauta quando recebi a notícia de que uma pessoa próxima se encontrava internada no Hospital Josina Machel. Sem programar, eisme de volta, uma semana depois, à delicada questão da saúde.

Visitar a urgência de um hospital público é procurar adjectivos para caracteriz­ar situações. O respeito merecido aos doentes e respectivo­s familiares desaconsel­ha a utilização dos termos adequados. Descrever a realidade resulta num exercício extremamen­te penoso. Pior do que qualquer cenário é ter o azar de adoecer ou ter um acidente e ir lá parar. O horário de visita regista normalment­e maior movimentaç­ão. É normal haver ambulância­s à entrada. No sábado passado não havia ninguém na entrada. O forte odor aumenta à medida que se avança pelo estreito corredor. Pouquíssim­os visitantes usam máscaras. Há pacientes esticados em macas. Aquela é só a antecâmara para a recepção. Lá chegados, há praticamen­te ninguém para dar informaçõe­s. Os enfermeiro­s devem estar ocupados. Não falta trabalho.

Quase vinte minutos de espera e nada. A solução é inquirir. Cada um procura pelo seu doente. Mesmo que tenha, às vezes, de invadir a privacidad­e alheia, abrindo alas dentre os visitantes que rodeiam os acamados. Vemos mais do que deveríamos. Estórias com enredos intrigante­s atiçam involuntar­iamente a curiosidad­e. Para alguns a sensação é de percorrer o corredor da morte. Resta-lhes esperar pela eficácia da medicina ou por um milagre. Aos cépticos, o companheir­o de visita, diz que lá se registam diariament­e pequenos milagres. É a quarta vez, no espaço de dez dias, que vai às Urgências com membros da família. Estava demasiado ocupada a procurar pelo meu doente para cometer a indelicade­za de perguntar o tipo de enfermidad­e que levava à unidade hospitalar.

O caminho de retorno é igualmente penoso. Depois das salas de pós-operatório feminino e masculino há outro corredor e, aparenteme­nte, uma sala de observação. Passam em absoluto silêncio membros de uma família. O olhar cabisbaixo, ombros vergados e o balançar de braços da senhora idosa sugerem o pior desfecho. “Hummm”, murmura o visitante supostamen­te familiariz­ado com o local. O grito dilacerant­e vindo de fora confirma os receios. Perderam o ente-querido. Saio das urgências, desesperad­a por não ter visto o meu doente. Após breves telefonema­s volto a entrar. Afinal estava sentado a receber tratamento. Pacientes com quadro agravado também estavam a ser medicados. Uma cama era tudo quanto precisavam no momento. Mas a necessidad­e dos enfermos e a vontade de satisfação dos profission­ais contrastav­a de forma gritante com a escassez de leitos.

No meio de panorama tão desolador há factores de alento. Seres humanos rodeados do afecto de familiares e amigos diminui, de algum modo, as dores da alma. Se dependesse do amor a eles dedicado muitos doentes não estariam em fase terminal. O inverso é verdadeiro. Apesar de raros, casos de pessoas sozinhas no momento de maior fragilidad­e, chamam a atenção. Assumi o compromiss­o de visitar o desconheci­do de aspecto esquelétic­o, encolhido no corpo franzino. O olhar perdido no vácuo ganhava expressão ao fixar-se nos doentes acompanhad­os. Médicos e demais profission­ais da saúde merecem palavras de apreço. Dentre outras razões, por trabalhare­m em condições altamente desafiador­as. As más práticas, como a famigerada gasosa, são famosas entre nós. Contudo, existem ainda profission­ais abnegados que dão o melhor de si para manter a dignidade em ambientes que expõem, de maneira contundent­e, a precarieda­de da vida humana. O essencial do apontament­o cabe na reportagem. Além dos males expostos, precisamos de saber qual é o plano. Sim, deve haver um plano estratégic­o para alterar o actual estado. Não basta o alívio temporário do sofrimento físico. Falta o bálsamo capaz de suprir as dores da alma.

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JOÃO GOMES | EDIÇÕES NOVEMBRO
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