Ainda a maka dos hospitais
A recente greve dos médicos mantém em pauta a reflexão sobre o sector da saúde em Angola, item que oferece invariavelmente um prato cheio para infindáveis debates. Ainda assim, não esperava voltar à carga tão cedo. Depois de esgrimir opiniões perceptivelmente favoráveis a um dos lados, achei correcto fazer outro tipo de incursão. Nada melhor do que a reportagem, o género jornalístico que congrega todos os outros, tendo como principal suporte os factos. Apurar, ouvir responsáveis, trabalhadores do ramo e, principalmente, os utentes do Serviço Nacional de Saúde é o caminho para radiografar de maneira realista o estado dos hospitais públicos de Luanda. Entretanto, como realçam os avisados seres que adoram citar trechos bíblicos, o homem não faz planos. Metaforicamente, claro. Na verdade, mulheres e homens devem fazer planos, embora a execução não dependa sempre das vontades envolvidas. Estava a pensar na minha pauta quando recebi a notícia de que uma pessoa próxima se encontrava internada no Hospital Josina Machel. Sem programar, eisme de volta, uma semana depois, à delicada questão da saúde.
Visitar a urgência de um hospital público é procurar adjectivos para caracterizar situações. O respeito merecido aos doentes e respectivos familiares desaconselha a utilização dos termos adequados. Descrever a realidade resulta num exercício extremamente penoso. Pior do que qualquer cenário é ter o azar de adoecer ou ter um acidente e ir lá parar. O horário de visita regista normalmente maior movimentação. É normal haver ambulâncias à entrada. No sábado passado não havia ninguém na entrada. O forte odor aumenta à medida que se avança pelo estreito corredor. Pouquíssimos visitantes usam máscaras. Há pacientes esticados em macas. Aquela é só a antecâmara para a recepção. Lá chegados, há praticamente ninguém para dar informações. Os enfermeiros devem estar ocupados. Não falta trabalho.
Quase vinte minutos de espera e nada. A solução é inquirir. Cada um procura pelo seu doente. Mesmo que tenha, às vezes, de invadir a privacidade alheia, abrindo alas dentre os visitantes que rodeiam os acamados. Vemos mais do que deveríamos. Estórias com enredos intrigantes atiçam involuntariamente a curiosidade. Para alguns a sensação é de percorrer o corredor da morte. Resta-lhes esperar pela eficácia da medicina ou por um milagre. Aos cépticos, o companheiro de visita, diz que lá se registam diariamente pequenos milagres. É a quarta vez, no espaço de dez dias, que vai às Urgências com membros da família. Estava demasiado ocupada a procurar pelo meu doente para cometer a indelicadeza de perguntar o tipo de enfermidade que levava à unidade hospitalar.
O caminho de retorno é igualmente penoso. Depois das salas de pós-operatório feminino e masculino há outro corredor e, aparentemente, uma sala de observação. Passam em absoluto silêncio membros de uma família. O olhar cabisbaixo, ombros vergados e o balançar de braços da senhora idosa sugerem o pior desfecho. “Hummm”, murmura o visitante supostamente familiarizado com o local. O grito dilacerante vindo de fora confirma os receios. Perderam o ente-querido. Saio das urgências, desesperada por não ter visto o meu doente. Após breves telefonemas volto a entrar. Afinal estava sentado a receber tratamento. Pacientes com quadro agravado também estavam a ser medicados. Uma cama era tudo quanto precisavam no momento. Mas a necessidade dos enfermos e a vontade de satisfação dos profissionais contrastava de forma gritante com a escassez de leitos.
No meio de panorama tão desolador há factores de alento. Seres humanos rodeados do afecto de familiares e amigos diminui, de algum modo, as dores da alma. Se dependesse do amor a eles dedicado muitos doentes não estariam em fase terminal. O inverso é verdadeiro. Apesar de raros, casos de pessoas sozinhas no momento de maior fragilidade, chamam a atenção. Assumi o compromisso de visitar o desconhecido de aspecto esquelético, encolhido no corpo franzino. O olhar perdido no vácuo ganhava expressão ao fixar-se nos doentes acompanhados. Médicos e demais profissionais da saúde merecem palavras de apreço. Dentre outras razões, por trabalharem em condições altamente desafiadoras. As más práticas, como a famigerada gasosa, são famosas entre nós. Contudo, existem ainda profissionais abnegados que dão o melhor de si para manter a dignidade em ambientes que expõem, de maneira contundente, a precariedade da vida humana. O essencial do apontamento cabe na reportagem. Além dos males expostos, precisamos de saber qual é o plano. Sim, deve haver um plano estratégico para alterar o actual estado. Não basta o alívio temporário do sofrimento físico. Falta o bálsamo capaz de suprir as dores da alma.