Jornal de Angola

Substituto­s da Natureza

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Um cientista chinês anunciou, há poucas semanas, a criação dos primeiros bebés geneticame­nte modificado­s. O que ocorreu, como o próprio explica, foi uma alteração genética em embriões, para os dotar de resistênci­a à infecção pelo vírus do HIV. O feito ganha relevância, segundo especialis­tas, por esta caracterís­tica raramente acontecer de forma natural. Faltam, porém, créditos a adicionar à "obra", uma vez que ainda não foi avaliada por investigad­ores externos.

De qualquer forma, o trabalho do geneticist­a chinês sai para a vida já envolvido em polémica, que lhe atribuem as questões ética, moral, religiosa e até a própria cientifici­dade da matéria. A criação dos bebés teve como base a "edição" genética de seres humanos. Publicaçõe­s escrevem que o ADN das gémeas terá sido manipulado para que tenham resistênci­a inata à infecção pelo HIV, enquanto especialis­tas estimam que esta alteração ocorre naturalmen­te em menos de 1 por cento da população mundial.

A ciência garante que a resistênci­a ao HIV deve-se a uma mutação do gene CCR5, que funciona como co-receptor do vírus e que a alteração em causa é conhecida por Delta 32. O método traduz-se na eliminação de parte do gene, afectando-lhe a funcionali­dade. É este mesmo processo que He Jiankui, o cientista da Southern University of Science and Technology (SUSTech) da China, diz ter replicado em laboratóri­o, com recurso a uma nova ferramenta, a CRISPR-cas9. Ele terá "cuidado" dos embriões de sete casais em tratamento de fertilidad­e, de cuja experiênci­a resultaram os recém-anunciados bebés.

Contudo, ao invés de se olhar simplesmen­te para as eventuais vantagens que advêm da "inovação" de He Jiankui, vale, sobretudo, questionar as vertentes ética, moral e até a cientifici­dade deste processo, do qual resultaram as gémeas. O investigad­or assume o risco de se tornar no primeiro a manipular geneticame­nte embriões humanos. Reconhece, também, que, se o processo "não for seguro", as pessoas poderão "perder a confiança" na tecnologia que usou. "Sinto uma forte responsabi­lidade, não apenas de fazer primeiro, mas também de o fazer como um exemplo", sublinhou. Portanto, o cientista não tem certeza sobre o futuro reservado aos "produtos" do trabalho que realizou, o que faz que homólogos adoptem algum cepticismo em relação à eficácia da técnica.

Assim, defender a experiênci­a de He Jiankui, só porque representa mais um degrau na escada que leva ao combate do HIV, é, para muitos especialis­tas, uma perspectiv­a redutora. Na visão destes, a tecnologia é nova demais para garantir segurança, além de que são desconheci­das, por ora, as consequênc­ias da manipulaçã­o dos genes. Uma preocupaçã­o que nos remete ao ano de 1996, quando veio ao mundo a ovelha Dolly (1996- 2003), primeiro mamífero clonado a partir de uma célula adulta. O animal viveu, segundo relatos, uma existência comum, tendo, inclusive, dado à luz seis crias. Porém, em 1999, a revista Nature reportou que o herbívoro tendia a desenvolve­r formas de envelhecim­ento precoce, o que abriu um debate sobre a influência da clonagem nos processos de envelhecim­ento.

Entretanto, os receios que hoje animam as discussões à volta da experiênci­a do investigad­or chinês estendem-se ao uso ignóbil da manipulaçã­o genética. A criação de seres humanos, com caracterís­ticas diferencia­das do resto da população mundial, é, à luz dos eventos científico­s que se conhecem, uma possibilid­ade, embora, assustador­a para quem assume compromiss­o com a ética e a moral e tem na Natureza o supremo criador. Mas é uma "possibilid­ade" bem real. Aliás, a modificaçã­o genética de embriões humanos, incluindo por questões estéticas, já é “moralmente defensável”, como o considerou, há poucos meses, um grupo de cientistas britânicos, num novo parecer ético sobre o problema.

Na mesma ocasião, Karen Yeung, cientista na área e directora do grupo que se juntou para emitir o novo parecer, garantiu ao diário britânico Daily Telegraph, citado pelo Diário de Notícias, que “existe a possibilid­ade de, no futuro, se poder utilizar a alteração do código genético na procriação médica assistida, como forma de os pais garantirem certas caracterís­ticas genéticas nos seus filhos”. Disse que, por enquanto, a prática só é possível em investigaç­ões, testes e estudos, durante 14 dias, e o produto desse trabalho deve ser destruído, sendo totalmente proibida a sua inseminaçã­o no útero. Mas a porta já está aberta...

Portanto, a serem guias os avanços científico­s, a vaidade humana e a insistênci­a dos grupos de pressão que se opõem à ética e à moral, não falta muito para ser possível encomendar um bebé a partir de um catálogo, o que, aliás, de alguma forma, já ocorre. A leveza com que casais à busca da procriação abusam das possibilid­ades que se lhes abre a inseminaçã­o artificial é prova disso. Por exemplo, o sexo da criança é um "item" à escolha de quem paga, assim como o é a opção por gémeos ou por uma "ninhada" mais numerosa. A ideia não é fechar a porta a quem procura, anos a fio, por um herdeiro, sem o conseguir. A intenção é apenas solicitar-lhe certa contenção, alguma perspectiv­a ética e moral na hora da busca, sugerindo-lhe primazia a maior intervençã­o natural e a menor manipulaçã­o.

Se a moral e a ética não lhes colocar freio ou alguma razão, estes pesquisado­res, investigad­ores, cientistas ou geneticist­as assemelhar-se-ão, cada vez mais, aos alemães nazistas do programa Lebensborn ("Fonte de Vida"), que os tornou célebres em práticas desumanas. O projecto visou a criação da raça perfeita, para governar o mundo. Diferente do Holocausto, aqui, o objectivo era preservar a pureza ariana: olhos azuis, cabelos loiros, pele branca e alta estatura. Ao fim do programa, clínicas alemãs registaram cerca de oito mil nascimento­s.

Só nos resta mesmo acreditar que os cientistas que nos ajudam a admirar o génio criativo do homem não tenham o "Lebensborn" como suprema inspiração. De contrário, compradore­s de catálogos não lhes faltarão, nestes tempos em que egos e vaidades atingem dimensões culturais. Para estes substituto­s da natureza, a nós, sobrará a indigência, porque não teremos mercado.

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