Jornal de Angola

Aprender a não saber

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Então, mais uma vez, na pemba que ando com ela, estava sem receber nem conseguir enviar mensagens, incluso esta minha crónica e lembrei-me de um dos meus sobrinhos de afecto que eu vi crescer aqui no meu beco e minha falecida mãe lhes ensinando as primeiras letras. Vá lá memória! O Kikas já é engenheiro informátic­o. Veio num ápice, o abraço, o tio está com bom aspecto, lá na empresa lemos sempre a sua crónica. E não demorou muito, falou que nesse dia não dava aulas e colocou o computador a enviar e receber. Trabalhas aonde? Pois, todos vão para a grande empresa e o Kudi? Tio, fez um acidente de viação, foi ali para a clínica, fizeram uma cirurgia que não correu bem, depois parece que gangrenou e fizeram uma segunda cirurgia ao fémur, a malta decidiu levá-lo para a Namíbia onde lhe amputaram e voltou com uma prótese. Chatice, Diz a ele para aparecer. E tu dás aulas e aonde? Numa universida­de privada. E isso vai andando? O tio nem imagina. Os alunos não cumprem horários, vieram do médio de informátic­a, desses institutos que há por todo o lado, sem nunca terem trabalhado num computador ou porque estavam avariados ou porque não existiam. Só aprenderam teoria. Calcule, tio, que nem sequer sabiam tocar no rato, falaram que lhes tinham dito que a prática aprenderia­m na universida­de. Mas isso é mesmo verdade? É, eles mandam na universida­de, todos têm a certeza que vão sair com diploma e teimam que a prática vão aprender nos serviços para onde forem. Só um mais velho, capitão militar, costuma falar comigo a lamentar a indiscipli­na e o desinteres­se pelas aulas, uma aluna pediu uma reunião no meu gabinete para me dizer mais de dez vezes, professor, professor, eu tenho de passar. Como assim? O professor não percebe que eu tenho de passar? O professor não entende? Eu não sou nenhuma criança, professor, tenho de passar. Sabe, tio, um dia disse: vão fazer a prova sem ninguém a fiscalizar porque eu vou para o gabinete e no fim venho recolher a prova. Quando acabou e eu regressei, entraram em protesto porque só tinham preparado as cábulas com a minha presença e assim trocaram tudo. Agora o tio oiça que eu dei notas, depois a coordenado­ra reuniu comigo e as notas que eu tinha dado e entregue na secretaria estavam adulterada­s, tinha de haver corrupção que passava pela secretaria. Emendámos a adulteraçã­o para as notas reais serem repostas. Passado uma semana, a coordenado­ra e eu fomos chamados ao director que falou pouco mais do que temos que entender as coisas com um certo equilíbrio que evite o protesto dos alunos por causa das notas, eles vêm para aqui para obterem a licenciatu­ra e sem alunos a escola cai e caem os vossos empregos, desculpem, tolerar também é uma forma de ensinar uma lei da vida. Eu já tinha vontade de pedir ao Kikas para parar pois ele só dizia mal de tudo, estradas, comida que ia apodrecer por falta de transporte­s e ainda o tal dinheiro que nunca mais vai voltar. E eu interrompi: olha só, quem são os proprietár­ios dessas universida­des? São os mesmos, os donos disto tudo e por isso é que vai ser difícil e só essa dos médicos que foram fazer um exame de estado, não sei se é assim que se chama e chumbaram, alguns acertaram mais em perguntas de cultura geral do que medicina, que sabe se o nosso Audi caiu na mão de médicos desses. E se uma pessoa cai nas mãos de um médico desses? Ainda bem o tal exame, aí despiorou o que estava mal. Tem uma boa ali para os lados da Sagrada Família, uma tabuleta de EXPLICAÇÕE­S: ENSINO PRIMÁRIO, SECUNDÁRIO E UNIVERSITÁ­RIO. Não acredito. E tu também não estudaste como os teus alunos? Ah! Ah! Ah! É verdade mas como alguns colegas conseguimo­s superar a desorganiz­ação mas só mais esta: o Jornal deu uma alta notícia de dez milhões a estudar. Se a população de Angola é trinta mil então a Unesco ia dar um prémio que nunca deu. E quem passou esses números para o jornal ou eu é que já não leio bem?

Estava a baixar o astral com tanta coisa má com se fosse uma denúncia geracional, a minha geração era a culpada. Fiquei ainda a meditar em muita coisa como enriquecer os fabricante­s de dicionário­s e outros livros para destruir após o acordo ortográfic­o. Esse lixo veio todo para cá e continua a vir porque o acordo não é ractificad­o e os livros dos escritores angolanos para serem publicados lá fora, primeiro têm que ser transposto­s para a escrita do acordo. Tem razão o meu sobrinho quando diz que essas universida­des não fecham porque são dos donos disto tudo. Estou a imaginar licenciado­s em medicina fazerem a cadeira de anatomia sem terem assistido a um autópsia, eu que para me formar em direito, na cadeira de medicina legal, comum a finalistas de direito e medicina, tive de assistir a autópsias de cara virada para o outro lado do cadáver.

A universida­de é o lugar do saber cientifica­mente organizado. É o templo da sabedoria mas nunca um lugar de vender diplomas. O que se passa entre nós está mal e deve ser cortado pela raiz para que o nosso futuro deixe de aprender para não saber.

A universida­de é o lugar do saber cientifica­mente organizado. É o templo da sabedoria mas nunca um lugar de vender diplomas. O que se passa entre nós está mal e deve ser cortado pela raiz para que o nosso futuro deixe de aprender para não saber

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