Jornal de Angola

Foliões resgatam a mística do Carnaval

Ex-integrante­s de grupos carnavales­cos na província do Cuanza-Norte tem saudades do Carnaval do antigament­e, razão pela qual querem resgatar a mística do Entrudo a partir da presente edição desta manifestaç­ão cultural do povo

- Manuel Fontoura | Ndalatando

A ex-dançarina do grupo carnavales­co do Bairro Azul, Joana Nascimento, já não sente a mesma emoção, quando ouve falar de Carnaval.

Ela dançou durante seis anos (entre 1986 e 1991), naquela altura era diferente, porque sentia o sangue quente devido às vibrações dos batuques e os cânticos de tristeza, transforma­dos em alegria.

Antes dos desfiles, passeavam por todos os bairros e ruas da cidade de Ndalatando, parecia coisa de outro mundo, diferente do que se vê hoje, em que o Carnaval nem dá nostalgia.

De 46 anos de idade, vendedora na praça de Catome de Cima, arredores da cidade de Ndalatando, Joana Nascimento recorda que antes não havia ninguém no bairro que negasse participar do Entrudo, mesmo sem nada a ganhar, juntavam-se mais de 400 foliões que dançavam dia e noite, durante uma semana.

Matilde Suca, ex-dançarina do grupo Surucucu, pertencent­e à Unidade Militar 218, avançou que a mística do Carnaval da década de 1980 desaparece­u em definitivo. Ela assiste a todas as edições e concluiu, que nada se compara com o Carnaval de antigament­e.

“Eu cheguei a ser princesa, durante dois anos, mas devido à guerra em 1992 tudo se quebrou, algumas pessoas morreram ou emigraram para outras províncias, principalm­ente para Luanda e nunca mais regressara­m”.

Referiu, que os responsáve­is eram militares e muitos também já não existem, “tal como o pai dos meus dois primeiros filhos”, afirmou Matilde Suca, de lágrimas nos olhos.

Em sua opinião, caso não haja investimen­tos e incentivos financeiro­s para a compra de todos os materiais, a festa de Carnaval vai desaparece­r lentamente. Actualment­e, vêem-se poucas pessoas adultas a dançar.

“Emboraexis­taummoment­o, em que os mais velhos se sentem cansados devido à idade, não se justifica que o Carnaval seja preenchido só por crianças”, realçou a antiga dançarina.

Para o mais velho Mário Jorge, de 55 anos, entre as décadas de 1980 e 1990, dançar Carnaval era obrigação em todas as aldeias, todos participav­am directamen­te na festa.

Recordou, que os grupos passeavam em todos os lugares e angariavam bens alimentare­s, entre outras ofertas recebidas depois da exibição, muitas vezes defronte de uma residência de uma figura importante do bairro. “Hoje, não se vê isso, o Carnaval está limitado ao desfile central, antes e depois quase nada se vê”, frisou Mário Jorge.

Soba de Vieta

Domingos da Conceição Quissassa “Mucuna”é um dos maiores dinamizado­res do Carnaval em Ndalatando, de 72 anos, conhecido nestas paragens como um dos grandes precursore­s e dinamizado­res da maior manifestaç­ão cultural.

O cabelo branco revela presença de um homem talhado na vida e no tempo. O mais velho é respeitado e admirado, tanto por adultos quanto por crianças do bairro Camundai. Constitui referência obrigatóri­a na zona, até mesmo por ostentar o cargo de Soba da zona de Vieta, um bairro novo que se estende para além da Camundai.

Começou a dançar na era colonial, em 1963, no grupo Camundai, actualment­e conhecido como Associados do Bairro com o mesmo nome, só parou em 1974, devido à revolução da época.

Lembrou que em 18 de Janeiro de 1978, altura em que inicia o Carnaval da Vitória e o desfile a 27 de Março, iniciou, igualmente, o seu papel como responsáve­l da linha da frente do grupo, que disputava com os grupos “Kifue”, “Kipata” e “Zavula”.

Naquele tempo, os grupos não se cruzavam, uma vez que havia sempre insultos que resultavam em confusão. “Surgiam depois os comerciant­es portuguese­s que atiravam fuba para os grupos, esses revoltavam-se e repostavam com pedras nos carros, causavam muitos feridos e até mortes”.

Os grupos tinham de obter licença na Câmara Municipal para dançar. As músicas chamavam a atenção e reprimiam as pessoas que roubavam, matavam e todas que praticam o mal nas comunidade­s, então, evocavam os seus nomes ou os das famílias, para que tivessem vergonha e não voltassem a cometer os mesmos erros.

Como prémios, os grupos carnavales­cos recebiam taças e não dinheiro. “Os prémios, hoje, têm mais valor, o que permite comprar algo útil para o grupo, embora, constitua um vício para algumas pessoas”, considerou.

“Na década de oitenta, devido à guerra em que o país estava mergulhado, as canções eram a favor da paz. Elaborávam­os temas que apelavam à unidade, o fim das hostilidad­es e também, referíamo-nos aos massacres e ataques perpetrado­s pelos inimigos do povo”.

Hoje, tudo mudou, para além de gravarem as músicas em CD, as canções evocam os benefícios da paz, união, reconstruç­ão nacional, luta contra o analfabeti­smo, violência doméstica e abusos contra crianças.

“Eu cheguei a ser princesa, durante dois anos, mas devido à guerra em 1992 tudo se quebrou, algumas pessoas morreram ou emigraram para outras províncias, principalm­ente para Luanda e nunca mais regressara­m”, conta Matilde Suca

O grupo Associados do Bairro Camundai, desde 1978, conquistou 18 títulos. Em 1981, o grupo foi convidado para uma festa cultural na província do Cuanza-Sul.

O ancião lembra com nostalgia, os tempos em que a festa de Carnaval manifestav­a-se durante vários dias, antes do desfile geral. Os grupos passavam de casa em casa e recebiam muitas ofertas, como dinheiro, panos, alimentos, entre outros produtos que eram arrumados para a festa final, que se realizava na quarta-feira de cinzas (Mabangas).

Apelos à pensão

Para Domingos da Conceição Quissassa e João Manuel Torino, as direcções provinciai­s da Cultura deviam olhar um pouco mais por eles e por outros da mesma época, por tudo que fizeram pelo Entrudo, na província do Cuanza-Norte, a exemplo do que aconteceu em alguns anos com dançarinos de Carnaval em Luanda.

“Penso que todos estes anos, desde 1963, como dançarino e desde 1978 como responsáve­l de grupo, o Ministério da Cultura devia olhar para nós um pouco mais, e todos os antigos integrante­s dos grupos carnavales­cos de Ndalatando e de outras regiões. São mais de 30 anos, nunca recebemos um estímulo”, reclamou Domingos da Conceição Quissassa.

Na opinião dos anciãos, deviam estar inscritos como pensionist­as, para ajudar nos gastos da família. Domingos Quissassa “Mucuna” e João Manuel Torino vivem da agricultur­a.

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NILO MATEUS | EDIÇÕES NOVEMBRO| CUANZA-NORTE Associados do Bairro Camundai é o grupo que mais títulos conquistou a nível da província do Cuanza-Norte desde 1978

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