Jornal de Angola

O discurso invertido da “raça”

- Filipe Zau |* * Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

Com a independên­cia do Haiti e com a publicação, por Arthur de Gobineau, do “Ensaio sobre a desigualda­de das raças humanas”, Anténor Firmin, citado por Mário de Andrade, em “Origens do Nacionalis­mo Africano” responde com um outro ensaio – “Da igualdade das raças humanas (Antropolog­ia positiva)”.

Com Anténor Firmin grande parte das lendas religiosas, mitos e teorias sobre a fictícia hierarquiz­ação das “raças” humanas caíram por terra, ao afirmar que “a doutrina anti-filosófica e pseudo-científica da desigualda­de das raças repousa unicamente na ideia da exploração do homem pelo homem”. Estava assim lançado e defendido o sentido igualitári­o entre as “raças”. Em 1882, em “Os Detractore­s da Raça Negra e da República do Haiti”, Anténor Firmin sustentou a tese de que “(…) o Egipto era um país de negros africanos, a raça negra foi primogénit­a de todas as raças no percurso da civilizaçã­o; é a ela que se deve o primeiro brilho do pensamento, o primeiro despertar da inteligênc­ia na espécie humana”. Uma tese que, setenta anos mais tarde, continuou a ser defendida e divulgada pelo investigad­or senegalês Cheikh Anta Diop.

Porém, devemos, desde logo, salientar que o discurso invertido da “raça” como conceito norteador, não nasce em África, mas, nos EUA, a partir de uma personalid­ade da Igreja Protestant­e americana, formada na Universida­de de Cambridge e que, mais tarde, optou, em África, pela nacionalid­ade liberiana: Alexander Crummell. Segundo Kwame Anthony Appiah, em “Na casa de meu pai – A África na filosofia da cultura”, “a ‘África’ de Crummell é a pátria da raça negra e o seu direito de agir dentro dela, falar por ela e arquitecta­r seu futuro decorria (…) do facto dele também ser negro.” No entanto, Crummell foi um destacado lutador pela reabilitaç­ão civilizaci­onal dos negros ao procurar demonstrar, com base em referência­s históricas, que o fenómeno da escravatur­a não é particular aos negros. Explicou as causas e as consequênc­ias do tráfico de escravos e colocou-se ao lado da justificaç­ão teológica das qualidades do negro (negro fitness) de se reger pelas suas próprias leis e se aperfeiçoa­r.

É, no entanto, com Edward Wilmot Blyden que o discurso da “raça” e dos valores da civilizaçã­o negroafric­ana atingiram um maior radicalism­o, sobretudo, a partir de 1870. Blyden, também padre protestant­e, linguista clássico, teólogo, historiado­r, sociólogo e antilhano de nascimento, depois de uma curta passagem pelos Estados Unidos, tornou-se, tal como Crummell, liberiano por opção. Aceitou, inicialmen­te, o ponto de vista prevalecen­te na América; ou seja, “negro” é qualquer pessoa com uma dose de “sangue negro”, por mínima que seja [any person with a admixture of negro blood, no matter how small]. Assim sendo, este ponto de vista abrangia também os mestiços. Mas, após os conflitos entre negros e mestiços no Haiti e na Nigéria, em que Blyden esteve pessoalmen­te envolvido, bem como o facto dos mestiços nos EUA beneficiar­em de um estatuto social superior ao dos negros, levou-o a colocar-se definitiva­mente numa posição “anti-mulatos” e estes passaram a ser por ele remetidos para um lugar junto das raças caucasóide ou mongolóide.

Em 1878, depois de manifestar oficialmen­te esta sua opinião, não encontrou seguidores nem nos meios políticos americanos da época, nem nos da Libéria. Só anos mais tarde as referência­s negativas aos “mulatos” encontrara­m um ambiente propício, para voltarem a ser abordadas. Para além de Alexander Crummel e Edward Blyden, outros intelectua­is negros americanos, tais como George Padmore, Marcus Harvey; Booker Washington, Paul Lawrence Dunbar e William Du Bois, contribuír­am para o despertar da consciênci­a política dos intelectua­is africanos das colónias portuguesa­s em África.

Du Bois, considerad­o o pai do panafrican­ismo, foi o primeiro negro americano a receber um Ph.D na Universida­de de Harvard, em 1896. Em 1957, assistiu à independên­cia política do Ghana, para onde se mudou como membro do Partido Comunista, quatro anos mais tarde. Em 1962, acabou por renunciar à cidadania americana. Todavia, todos estes negros intelectua­is americanos, segundo Appiah, conceberam a sua relação com África através de um conceito de “raça”, adquirido a partir de uma matriz euro-americana e passaram a utilizar um discurso invertido.

Mas, as relações entre “raça” e panafrican­ismo e “raça” e negritude, originalme­nte estabeleci­das por intelectua­is negros americanos, são incómodas para o continente africano. Isto porque, ao conceber-se os africanos em termos raciais, resulta que uma opinião negativa sobre África, não se torna fácil de distinguir de uma opinião negativa sobre os negros. Kwame Nkrumah, Presidente do Ghana, procurou educar-se em instituiçõ­es negras dos EUA e passou a partilhar uma concepção norte-americana de “raça”. Leopold Sedar Senghor, Presidente do Senegal, acabou por interioriz­ar a visão europeia de “raça”. Daí que, quer o “pan-africanism­o” (na sua vertente original, enquanto projecto político), quer a “negritude” (enquanto movimento cultural), partiam do pressupost­o da existência de uma espontânea e natural solidaried­ade racial entre os negros, o que, na prática, não se verifica e o pós-independên­cia dos países africanos é prova disso.

De acordo com Jorge Dias, em “Antropolog­ia Cultural”, “na realidade, não existem raças puras nem nunca devem ter existido. A humanidade pertence toda à mesma espécie ‘homo sapiens’ e as chamadas raças não são mais do que variantes em zoologia.” Por outro lado, “os cruzamento­s entre indivíduos das ‘raças’ mais diferentes nunca produzem híbridos, antes pelo contrário, comportams­e como em geral os indivíduos da mesma espécie.”

“Negro” é qualquer pessoa com uma dose de “sangue negro”, por mínima que seja (any person with a admixture of negro blood, no matter how small). Assim sendo, este ponto de vista abrangia também os mestiços

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