DUO OURO NEGRO
Uma carreira de trinta anos
Em linha recta, há quase seis mil quilómetros a separar Luanda de Lisboa. Mas para calcular a viagem feita pelo Duo Ouro Negro seria preciso arranjar um contador próprio, que incluísse o palmilhar de terreno dentro de Angola, de Malanje a Maquela do Zombo, passando pelas Lundas, e seguindo depois África fora, até alcançar a Europa, atravessando para o continente americano, com paragens no Brasil, Argentina e até Woodstock, com tempo ainda para visitar pontos mais distantes do planeta, como o Japão ou a Austrália.
De tudo isso, Raul Indipwo e Milo MacMahon fizeram música, numa carreira de mais de 30 anos que foi das mais internacionais da Língua Portuguesa, a partir do momento em que surgiu o Duo Ouro Negro, a dupla que gravou os primeiros discos em 1959, há 60 anos. É uma carreira que foi world music antes de se falar de world music e que está ainda a aguardar pela devida justiça poética. Ou, pelo menos, à espera de ser vista além dos êxitos ocasionais, da popularidade da época, além da ausência dos discos nas lojas.
O Casino Estoril, em Lisboa, recebeu, sábado, 20 de Abril, um concerto de tributo e celebração que se tornará itinerante, com músicas do Duo Ouro Negro a serem interpretadas por vários músicos, entre eles Bonga, Paulo Flores, José Cid, Dany Silva ou o grupo gospel Shout. E é uma nova oportunidade não só para recordar aquelas canções que de qualquer forma não se esquecem, como “Muxima”, “Maria Rita” ou “Vou Levar-te Comigo”, como para ir mais longe, quase tão longe como o pioneirismo, a experimentação etnográfica e a miscigenação cultural da música de Raul Indipwo e Milo MacMahon, e reconhecer a verdadeira dimensão deste legado em tons de brilho dourado e sombra. “Blackground” e “Vou Levar-te Comigo” Os rios servem para muitas metáforas, mas nem todas serão tão justas como a do rio que nasce no início de “Blackground”, música referência do disco homónimo, e que percorre o mundo, em afluentes de afluentes que tanto podem ser o Amazonas como o Rio de la Plata, o Kwanza ou o Limpopo, que navegam ao ritmo da tchianda, do semba, da marrabenta e até do jazz, em batidas de n’djimba ou kissanji. É como se diz no início da música, frase-chave para entender o Duo Ouro Negro:
“Nunca esqueças o teu background, nunca esqueças o teu blackground”
Raul Indipwo (Raúl José Aires Corte Peres Cruz) nasceu no Cunene, Angola, em 1933. É filho de mãe branca e pai negro, que trabalhava nos serviços de saúde do Exército, o que o levou a conhecer o país todo, desde as ruas de Luanda às tradições rurais. Milo MacMahon nasceu no Lubango, em 1940, filho de pai luso-angolano, que lhe passou o apelido que a bisavó escrava tinha adoptado do seu senhor. Conheciam-se desde sempre, do liceu em Benguela, e acabaram por se reencontrar para fazer música.
Subiram pela primeira vez juntos ao palco do Cinema Restauração, em Luanda, em 1957, e nunca mais deixaram de combinar o seu conhecimento da tradição musical do país onde nasceram, o amor pela etnografia, a história, tudo conjugado em músicas como “Kurikutela” ou “Talo on N’Bundo” (que chegou a ser analisada pela censura), nem mesmo quando seguiram para o que na altura era a “Metrópole”, Lisboa, onde, nos anos 1960, construíram uma popularidade que se começou a espalhar pela Europa. Ou até mesmo quando, durante um período, chegaram a ser um trio, com o contributo de José Alves Monteiro, ao estilo do famoso treinador do “vocês três, façam um quadrado”.
Não por acaso, no Verão de 1965, o kwela foi o nosso twist, o ritmo que toda a gente queria dançar, traduzido pelo Duo Ouro Negro a partir de batidas sul-africanas e tocado em palcos de Portugal, mas também da Suíça, França, Finlândia, Dinamarca. E também não por acaso, só nos anos 1960 participaram duas vezes no Festival da Canção, e por duas vezes conseguiram o segundo lugar, e criaram até uma opereta, exibida na RTP, “Rua d’Iliza”. Afinal, Ouro Negro, no Sul de Angola, era isso mesmo – qualquer riqueza excepcional nascida naquele solo, fosse café, petróleo ou dois músicos feitos rio, o tal da metáfora.
É verdade que a combinação veio a desaguar naquelas músicas que agora toda a gente conhece, mais tardias, o famoso e afunilado para cultura kitsch “Vou Levarte Comigo” ou o muito cantável “Maria Rita”, mas há muito mais do que isso. E ainda que pouco reste nas discotecas, e muito esteja por reeditar (Blackground, a obra mais aclamada pela crítica, teve uma edição especial de coleccionador em 2018, feita pela Armoniz), o Duo Ouro Negro foi um dos fenómenos mais internacionais da música cantada em português (e muitos outros dialectos, como não podia deixar de ser).
Subiram pela primeira vez juntos ao palco do Cinema Restauração, em Luanda, em 1957, e nunca mais deixaram de combinar o seu conhecimento da tradição musical do país onde nasceram, o amor pela etnografia, a história, tudo conjugado em músicas como “Kurikutela” ou “Talo on N’Bundo”