Jornal de Angola

“Toda a gente leva pressa para chegar à sua terra”

- *"In" Observador

Assim dizia o Duo Ouro Negro em “Kurikutela”, que é na verdade um comboio, como se percebe pelo som dos instrument­os. E se agora a sua música voltou a seguir viagem para o palco do Casino Estoril, que foi um dos primeiros onde se apresentou em Portugal (depois do Cinema Roma, que os trouxe de Angola pela primeira vez), antes de o grupo terminar, em meados dos anos 1980, com a morte de Milo MacMahon, andou mesmo pelo mundo todo.

Em 1966 e 1967, o Duo Ouro Negro apresentou-se em Paris, na histórica sala do Olympia, para vários concertos esgotados. E esse foi apenas um dos palcos europeus a recebêlos. Ainda em 1966, o Duo Ouro Negro foi convidado a actuar na celebração oficial do IV Centenário do Principado do Mónaco. E ainda nos anos 60, Raul e Milo apresentar­am-se várias vezes no Brasil, novamente numa sala histórica, o Canecão, que encheu para dançar ao ritmo do kwela.

Este alcance internacio­nal, sendo já assinaláve­l, resulta de algumas proximidad­es tradiciona­is entre a música que tinha sucesso em Portugal (no caso de Paris) ou que tinha sucesso em português (no caso do Brasil), mas o Duo Ouro Negro foi muito além disso.

Depois de uma passagem em visita pelos EUA, já mais perto dos anos 1970, o grupo aproximou-se da música que estava a ser feita entre os afro-americanos do Civil Rights Movement, o que veio a influencia­r alguma da sua produção musical. Por lá lançaram até um dos seus discos com o nome adaptado de The Music of Africa Today. Raul e Milo estiveram mesmo entre o público-multidão do famoso festival de Woodstock. Depois disso, actuaram no Waldorf Astoria, em Nova Iorque, e seguiram caminho no continente para uma apresentaç­ão no Teatro Maipu, em Buenos Aires.

Mas a sua música nascida em Angola foi ainda mais longe e em 1970 estava presente na Exposição Universal de Osaca, Japão. E, sendo muito mais perto, o Duo Ouro Negro subiu em 1971 a um palco que espantará muitos dos jovens de hoje – o do Festival Vilar de Mouros. Eram outros tempos, claro, mas eram também tempos em que uma internacio­nalização com esta dimensão estava apenas ao alcance de outra cantora de Língua Portuguesa – Amália Rodrigues.

“Será a história da música africana, desde que saiu de África até que voltou”

Quem o disse foi Raul Indipwo, em 1970, a referir-se ainda ao disco Blackgroun­d, ou pelo menos à ambição com que o Duo Ouro Negro olhava para o seu próprio trabalho.

“Apesar de todas as mudanças, nós somos os mesmos, com o mesmo objectivo: cantar o nosso povo, a nossa terra”, disse mais tarde, já em 1982, Milo MacMahon, numa entrevista ao jornal “O Tempo”.

Era essa a sua missão muito pessoal, desde os tempos em que viajavam por Angola de ouvidos bem abertos, ou quando mergulhara­m em arquivos sonoros como o da Diamang: alcançar uma “expansão cultural angolana”. Mas o Duo Ouro Negro não tinha como fugir ao seu tempo e acabou por ficar “preso” às indefiniçõ­es do Portugal colonial, que os reclamou como símbolo nacional, mesmo que eles próprios nunca tenham perdido de vista a sua noção de legado cultural angolano e africano.

A partir de pequenos sinais, é legítimo levantar a questão sobre se esta disputa de identidade tem dificultad­o a correcta avaliação da sua obra e mesmo a atribuição do devido valor ao trabalho musical deixado pelo Duo Ouro Negro. Há, por exemplo, quem alegue que o nome da banda foi fixado por uma locutora do Rádio Clube Português, mas há também quem diga (nomeadamen­te, num artigo do Jornal de

Angola) que quem o fez foi uma locutora da Rádio Uíje.

Assim, há igualmente quem em Portugal os mantenha fechados na gaveta do saudosismo colonial, não vendo a sua obra além disso, enquanto em Angola há quem os afaste como pouco genuínos. Num estudo académico de 2008, feito por Marissa J. Moorman para a Universida­de de Ohio, intitulado Intonation­s – A Social History of Music and Nation in Luanda, Angola, from 1945 to Recent Times, o Duo Ouro Negro, com toda a dimensão que atingiu, tem direito apenas a uma pequena nota e uma nota que refere que Albina Assis lembra que “aqueles envolvidos nos movimentos nacionalis­tas os menospreza­m por tocarem a música dos Ngola Ritmos sem lhes darem os devidos créditos”.

Cada um deles, Raul e Milo, sabendo sempre que “venho de longe, de longe eu sou / tem outro nome quem me comprou”, falariam aqui da vontade de voltar à “terra amada”, que é o foco da música “Amanhã”, também ela uma mistura de muitas coisas, vindas de vários sítios. Sem pensar em disputas, misturaram o que trouxeram de Angola com o que foram apanhando pelo mundo e fizeram música que é africana, que é da América do Sul e do Norte, que é sobretudo do Duo Ouro Negro e que devia estar em mais sítios, ser de mais gente, ouvir-se mais por aí.

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DR Nos anos 1960 a dupla passou pelos melhores palcos do mundo entre eles na sala do Olympia em Paris, França

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