Jornal de Angola

Amar compensa mais do que odiar

- Adriano Mixinge

Pensando que com tantos áudios, textos e polémicas de todo o tipo, das mais banais às necessária­s e interessan­tes, a circularem entre nós, é evidente que os ânimos estão excessivam­ente exaltados e foi só por um triz que, comendo um bom cacusso, as espinhas de peixe não ficaram encravadas no céu-da-boca dele.

Quase que ia mordendo a língua quando, dentro da cavidade, ela moveu-se célere e os pedacinhos de esqueleto prestes a serem triturados soltaram-se, dispostos a desfrutare­m da dança que os sacrificav­a. As espinhas do peixe não ficaram à deriva. O sabor da cabeça de cacusso acalma: o importante é não ficarmos muito tempo sem chupar uma delas e se não for de cacusso, então, que seja do peixe que tivermos.

Os áudios, textos e polémicas de todo o tipo fazemnos recordar que, de um modo geral, se há algo que encontramo­s amiúde na história de arte, da literatura e da política, de todas as épocas e de todas as sociedades, é gente que se ama e gente que se odeia, com inusual intensidad­e e muitas vezes com alguma utilidade.

O dissenso construtiv­o é um catalisado­r de desenvolvi­mento, mas a polémica estéril é, precisamen­te, o contrário: diverte, mas turva o discernime­nto.

Muitos amam para poder viver e outros odeiam para existirem: uns e outros empenham-se em amar e ou em odiar como se, nesse acto, estivesse a razão das suas vidas. E é verdade que muitas vezes está, mas, noutras, não deveria estar: se não tivesse havido uma guerra civil, em Angola, o mais provável é que estivéssem­os já num país desenvolvi­do.

Na boca do comensal, a massa farinhenta comprimias­e com cada martelada dos dentes, espalhando um suco sobre as papilas gustativas, deixando um aroma caracterís­tico que, de repente, inscrevia-lhe na história do cacusso que comia, como um epitáfio tão húmido como as guelras desfeitas. É verdade que um digeria o outro, mas, naquele instante, o peixe e ele uniam os seus destinos: para o bem e para o mal estamos atrelados a um passado e a uma história comum.

O céu-da-boca dele agradeceu o cessar das investidas e esperou pelas recorrente­s lambidelas da língua, com a sua porosidade que arrepia. Acontecia-lhe com o cacusso o mesmo que com o funje de bombó bem quente com ovo fervido e chouriço: ele recordava a mistela como se fosse um manjar que estivera na origem do mundo, enquanto no sabor da cabeça do cacusso saboreava várias recordaçõe­s de viagens, de amores e de ódios.

A gente que se ama é de longe mais afortunada que a gente que se odeia: estes últimos ignoram quão inglório é o sentimento que lhes castiga. Não há amor mais intenso que o cimentado na comunhão de interesses pela arte, pela literatura e, às vezes, também, pela política: a pureza da estética e os debates ideológico­s podem provocar as uniões mais sólidas ou as clivagens mais radicais. Outras formas de amar ou de odiar.

Enquanto comia, o comensal recordava que, na adolescênc­ia, ficara sentado a olhar para o peixe grelhado que a mãe servira ao pai, num prato de vidro cuja transparên­cia permitia-lhe ver o desenho do olhado estampado, caído à volta da mesa, como se ela usasse uma saia: apesar de invejar o privilégio, ele nunca desconfiar­a que o da cabeça era um sabor que bem mereceria um poema de amor tanto como detestava o gesto da mãe.

Na história da arte, da literatura e da política, em Angola, a gente que se ama e a gente que se odeia abunda ou, mesmo, há gente que sem chegar a amar-se e ou a odiar-se tanto mantém-se junta ou, pelo contrário, separada por intermináv­eis rivalidade­s: foi, é e continuará a ser assim.

Entre nós são tão conhecidas as histórias de ódios e as de rivalidade­s – a maior delas provocou uma guerra prolongada - e muito pouco conhecidas as histórias de amor entre os artistas, entre os intelectua­is e entre os políticos como se, na verdade, se amassem pouco. Não é certo e não falo de amores platónicos: o que escasseia é quem as sabendo, também as conte.

Os áudios, textos e polémicas que circulam e há, entre nós, fazem ver, por um lado, que a gente que se ama e a gente que se odeia fascinam, se não do mesmo modo, sim com o mesmo interesse e, por outro, que amar compensa muito mais do que odiar.

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