Jornal de Angola

“Proteger a criança é obrigação de todos”

O director-geral do Instituto Nacional da Criança (INAC), Paulo kalesi, afirma, em entrevista ao Jornal de Angola, que proteger a criança do trabalho infantil é obrigação de todos. A começar pelas famílias. Porque proteger a criança é garantir o futuro. U

- Yara Simão

O que leva as crianças a serem submetidas ao trabalho infantil?

Em Angola as crianças exercem actividade­s forçadas e as principais causas são a desestrutu­ração familiar, pobreza e a violência doméstica de que muitas delas são vítimas, além do consumo excessivo de álcool por parte dos progenitor­es. No país, o trabalho forçado é exercido por menores com idades que variam entre os 10 e 17 anos.

Quantas crianças estão nesta situação?

No ano passado, tivemos um registo em todo o país que apontava para 395 crianças nesta condição, entre rapazes e raparigas. Este ano, de Janeiro a Maio, já estamos com 173. O que esperávamo­s é que os casos fossem diminuir ao invés de crescer. Para que se dê um travão no trabalho infantil precisámos todos de sensibiliz­ar as famílias que submeter a criança a trabalhos forçados não só é mau para o seu futuro, como do próprio país, que se verá sem os quadros necessário­s para o seu desenvolvi­mento.

A situação ainda não é preocupant­e?

Há dois anos tivemos um número consideráv­el de crianças a trabalhar em fazendas agrícolas, na exploração de inertes e na produção de blocos. Hoje, os números diminuíram. Conseguimo­s mudar a consciênci­a de alguns adultos, mas temos de reconhecer que ainda há muito por se fazer. No ano passado foi elaborado o Plano Nacional de Combate ao Trabalho Infantil, que a nível técnico já foi validado e remetido aos órgãos de direito para a sua aprovação. Só com a aprovação do plano vamos poder combater esse mal.

Em que sectores as crianças estão mais expostas a trabalhos forçados?

No sector informal é onde está o grande problema. Os menores são usados por adultos, principalm­ente mulheres, para carregarem compras, para vender bolinhos na zunga, acarretar água em prédios e até para vender produtos tóxicos e proibidos, que põem em risco a sua saúde.

O MAPTSS tem feito um grande trabalho no sentido de se dar solução à situação em conjunto com outros órgãos da sociedade, porque este problema não acontece só no sector informal da economia.

Há crianças que ficam em portas de supermerca­dos e de outros estabeleci­mentos de grande concentraç­ão de pessoas para pedir dinheiro. Esses actos também podem ser considerad­os trabalho forçado, já que por detrás disso podem ter como mandantes os pais?

Nesses casos estamos a falar de crianças envolvidas na mendicidad­e. Nós temos acompanhad­o a intenção dos adultos que estão na génese disso. Temos acompanhad­o as senhoras que pedem esmolas no Largo Primeiro de Maio e descobrimo­s que nem todas

são vulnerávei­s. Elas vivem em Viana e chegam cedo às imediações do Instituto Médio de Luanda (IMEL), trocam de roupa, colocam as crianças às costas e outras até vestem roupas sujas aos filhos e começam a teatraliza­r o drama delas.

O que têm feito para impedi-las?

Quando as interpelam­os de forma identifica­da, nos compromete­ndo em ajudar, elas fogem. É só para perceberem que existe um aproveitam­ento da imagem da criança sofrida para poderem obter ganhos. Todas as famílias que procedem desta forma estão a incorrer em erro e a criar danos à criança. Se de facto precisam de apoio, devem recorrer à repartição municipal da Acção Social, onde vão ser cadastrada­s e apoiadas.

Mas essa situação não expõe as crianças a riscos?

Essas crianças utilizadas nas ruas estão vulnerávei­s a pragas, a serem abusadas física e sexualment­e, estão expostas até mesmo ao rapto. Tem havido total irresponsa­bilidade da parte dos pais, que quando os seus planos dão errado vão à Polícia chorar, porque os filhos desaparece­ram.

Qual tem sido a actuação do INAC para reverter a situação a favor da criança?

A principal arma contra o trabalho infantil é a intensa sensibiliz­ação civil contra a exploração das crianças e adolescent­es, que constitui uma grave violação dos direitos humanos fundamenta­is.

Precisamos assumir o compromiss­o de não colocar a criança em situação de risco, nem num contexto de extrema vulnerabil­idade e pobreza. Precisamos de estar convencido­s que a responsabi­lidade da protecção da criança é de todos nós. Não podemos proteger os nossos filhos e os dos outros explorálos em fazendas agrícolas, em obras de construção ou em negócios ilícitos. Isto constitui crime contra os menores, que devido aos maus tratos a que são submetidos no trabalho forçado os torna agressivos e perigosos.

Os explorador­es são criminaliz­ados?

Estamos a trabalhar neste sentido. Urge a necessidad­e de haver medidas de responsabi­lização criminal dos pais e encarregad­os de educação que envolvem os filhos em trabalho infantil exploratór­io e, por outro lado, é necessário que se faça um trabalho de sensibiliz­ação junto das famílias para a mudança de atitudes.

A onda de violência nas comunidade­s é cada vez maior. Todos

os dias são reportadas situações de violência que envolvem crianças. Qual é a reflexão que faz sobre o fenómeno?

Os casos de violência contra a criança não são alarmantes, mas preocupant­es, uma vez que temos vindo a registar um número consideráv­el de denúncias. No ano de 2018 registamos mais de 4 mil casos. Este ano, só no primeiro trimestre, tivemos mais de mil casos e neste segundo semestre mais de dois mil casos. Os números assustam. Mas são os que o INAC registou. Temos consciênci­a de que existem vários casos que não chegaram ao conhecimen­to dos nossos serviços, a nível de cada uma das 18 províncias do país.

Esses números não lhe dizem nada?

A divulgação de muitos casos de violência não significa que os casos tenham aumentado. O que acontece é que o trabalho de sensibiliz­ação, palestras nas escolas e outras instituiçõ­es tem contribuíd­o para que as pessoas ganhem consciênci­a e denunciem mais. Hoje recebemos denúncias até mesmo das

próprias crianças, dos vizinhos e dos próprios membros da família.

Que respostas o Instituto tem dado às denúncias que lhe chegam?

A sociedade tem notado a resposta das instituiçõ­es de direito. Hoje as pessoas estão satisfeita­s ao acompanhar o resultado das suas denúncias. Achamos que a mensagem que temos vindo a passar dos casos tem surtido efeito. Se não o fizermos, corremos o risco de permitir que os agressores continuem a fazer das suas, as crianças abusadas não terão direito ao acompanham­ento médico e psicológic­o e podem vir a tornar-se futuros agressores.

O número de crianças abusadas sexualment­e tende a crescer?

Até Abril, a média para todo o país estava em mais de 60 casos. O ano passado tivemos 600 casos de abuso sexual a crianças, e Luanda liderava a lista com 200. Este ano, neste semestre, estamos com 45 registos. O número tende a baixar e, se continuarm­os assim, até final do ano não teremos nem a metade do número do ano anterior.

Qual é a função do Instituto em relação a crianças em conflito com a Lei?

O INAC tem as suas atribuiçõe­s e acções direcciona­das para trabalhar na prevenção e acompanham­ento das crianças nesta situação. Mas o foco está no Tribunal de Menores, que não consegue realizar as suas atribuiçõe­s

no seu todo porque faltam alguns serviços. A Lei prevê que crianças com comportame­ntos desviantes, em conflito com a lei, além das várias medidas que os juízes possam aplicar, o último recurso é o internamen­to do menor no centro de reeducação, mas o país não tem esse centro. Logo, os juízes são forçados a devolver a criança à família.

A falta de centros de reeducação penaliza os menores?

Sim. Este facto tem contribuíd­o para o índice de violência infantil que se regista em todo o país, por causa da reincidênc­ia que já existe na própria criança. Mas vamos trabalhar para garantir o direito de reeducação à criança em conflito com a Lei. Há órgãos competente­s, como os ministério­s do Interior, da Acção Social e os Tribunais, para que urgentemen­te se criem centros de reeducação. Só assim conseguire­mos recuperar um número consideráv­el de crianças envolvidas com o mundo do crime. Outro senão é a criação de tribunais de Julgado de Menores nas províncias. Tudo para o bem da criança.

As crianças em conflito com a Lei, na sua maioria, estão evolvidas com drogas?

Existe essa tendência. Porque elas para cometerem crimes estão sob o efeito de alguma substância. E nós temos recebido muitas denúncias de pais que recorrem ao Instituto em busca de socorro para tirar os filhos do mundo das drogas. Aproveito para dizer que sempre que os pais estiverem a passar por uma situação dessas, devem denunciar, para que a criança tenha o devido acompanham­ento.

Como caracteriz­a a problemáti­ca do tráfico de crianças no país?

O problema de rapto de crianças não é só de Angola, é um fenómeno global. Nas conferênci­as e protocolos em que vamos participan­do e assinando, apontam-nos que o rapto associado ao tráfico de crianças é o terceiro negócio ilegal do mundo. Em Angola, o fenómeno é alimentado pela fragilidad­e e vulnerabil­idade de um grande número de menores órfãos que circulam ou atravessam as fronteiras sozinhas, sem documentos de identidade ou autorizaçã­o escrita dos progenitor­es ou tutores.

O que motiva o rapto em Angola?

Apesar da inexistênc­ia de dados específico­s, acredito que os casos revelados indicam que a servidão doméstica, trabalho forçado, exploração sexual e o recrutamen­to para actividade­s ilícitas são as principais motivações para o tráfico de menores.

A situação está controlada?

Temos vindo a gizar estratégia­s para prevenir estes acontecime­ntos, que passam pela formação das instituiçõ­es e das próprias famílias, porque o tráfico de pessoas é uma brutal violação dos seus direitos, porque as crianças podem sofrer abusos psicológic­os e sexuais.

“No ano passado foi elaborado o Plano Nacional de Combate ao Trabalho Infantil e ao nível técnico já foi validado. Neste momento já foi remetido aos órgãos de direito para a sua aprovação”.

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ALBERTO PEDRO | EDIÇÕES NOVEMBRO

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