Jornal de Angola

Sementes de abóbora

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Fizeram-me uma observação de singular filosofia. Houve um deslumbram­ento confirmado com actos políticos reais. Mas, talvez se tivesse começado a correr muito rápido quase sem reparar nos caminhos esburacado­s e nas pessoas que emergiam para a mudança, quantos e muitos de cadastro silencioso. Toda a gente se concentrou na luta contra a corrupção, palavra que passou a incluir todas as ilicitudes, corromper, ser corrompido, lavar dinheiro, colocar divisas lá fora em paraísos fiscais… e ainda uma elite criminosa restrita que nunca foi revelada. Certo que o princípio combater o que está mal e melhorar o que está bem, por si, não define mal e bem. Entenda-se que corrupção é universal. Há até um Instituto Internacio­nal que classifica os países mais corruptos e os menos corruptos. Mas a questão não é essa. Aqui, durante décadas, foram permitidos todos os actos de roubalheir­a de colarinho branco. Todos sabiam. O poder e o povo. E quando se falava em corrupção era a do pequeno director de escola que cobrava matrícula. E chegouse ao ponto de os fenómenos de ilicitude económica passarem a ser a regra. O erro consiste em que a corrupção se combate com profilaxia e não com “medicament­os.” Primeiro foi roubar e deixar roubar para agora se andar à procura de um anel de ouro perdido na areia. E é preciso não esquecer que o primeiro acto contra a corrupção foi o de trazer o processo do corruptor para cá o que, até agora, não deixa de ser paradoxal.

Cada vez mais se levantam vozes contra as imunidades usadas para proteger criminosos ou dos chamados foros privilegia­dos de forma a que a pessoa referida, não obstante a quase evidência da prova acusatória não ser julgada enquanto estiver no poder. Ainda agora, uma ex-presidente da Argentina, carregada de acusações de milhões de dólares, é deputada, está a ser julgada mas candidatou-se à vice-presidênci­a da Argentina…

Entre nós é preciso pensar no que é essencial: a escola. É na escola que se ensinam os valores. Todos e não começar a desaprende­r quando o pai se vê obrigado a entregar o dinheiro à criança para dar ao director…corrupto. É na escola. Não é na política nem nos partidos que comandam o Estado. Foi dessas áreas que saíram os heróis que nos deram Pátria, mal sabendo que haveria de ser dessas áreas que haviam de sair os donos disto tudo. De arranha-céus, fazendas que nunca visitaram, bancos, supermerca­dos caídos do céu, clínicas, farmácias, condomínio­s.

Angola precisa de andar para a frente com todos. Mesmo com os que roubaram e contra os quais não se fez prova. É preciso ter cautela para não violar princípios: quem acusa é que tem de provar que alguém obteve enriquecim­ento sem causa legítima… não é o acusado que tem que provar que não fez mal. Portanto vamos para a frente com todos. Com os grandes que dão empregos. Imagine-se a ironia de o Estado nacionaliz­ar ou confiscar um grande supermerca­do. Sendo certo que não é missão do Estado gerir estruturas desse tipo, teria de a licitar por concurso. E quem iria comprar? Gente rica, quiçá da turma. Por isso, é preciso o controlo dos serviços públicos, do ensino particular sem qualidade como as universida­des que vendem cursos, o controlo das actividade­s económicas, e o apoio aos pequenos e médios agricultor­es para se diminuírem as importaçõe­s. Também se impõe a fiscalizaç­ão de obras para não andarmos a fazer estradas de dois em dois anos, deixar de cortar as árvores para depois aparecerem as ravinas. No antigament­e, os colonos seguiam os caminhos de nossos ancestrais que acabaram em estradas de terra batida e mais tarde com asfalto. Punham brita. Passava o cilindro, depois o asfalto, as valas para escorrer as águas da chuva. E havia a casa do cantoneiro, o homem e ajudantes que tratavam da manutenção da via. Não cortavam árvores à beira da estrada. Por isso não havia ravinas a granel.

Outro dia alguém me telefonou: “tio Rui, tem montanhas de fruta de pequenos camponeses que antigament­e vinham vender à beira da estrada onde passavam os camionista­s. Agora tem estradas onde não se passa e para Benguela já não vão os autocarros bonitos com televisão e casa de banho. Porque é que não mandam helicópter­os da polícia e outros aviões buscar a fruta para as escolas se há uma data de campos de aviação de terra batida? Pior é que andam a importar fruta para vender nos supermerca­dos.”

Ainda lhe disse que essa dos helicópter­os é um exagero, mas deixar apodrecer a fruta ou a batata ou o milho ou a mandioca é crime. É um crime colectivo, nosso. Disse-lhe ainda que já passa muita fruta nacional, principalm­ente nas quitandeir­as. Ainda me lembrei de Belgrado, do tempo da antiga Jugoslávia, com os carrinhos de mão a assar maçarocas que eu comia com a avidez da minha infância. Ou as castanhas, “quentes e boas” em Lisboa. Ou os carrinhos com fruta na rua do Leme no Rio de Janeiro. Ou as tendas com água de coco no México…

E fui ao supermerca­do com tangerina importada, cerejas, tamarindo e, de espanto, sementes de abóbora torradas, importadas de Portugal, as sementes, baratas, que nós comíamos no pobre cinema dos bombeiros em Coimbra. Sementes de abóbora! Como é que se consegue importar isso se não há nas farmácias fármacos para diabéticos?

Porque é que não mandam helicópter­os da polícia e outros aviões buscar a fruta para as escolas se há uma data de campos de aviação de terra batida? Pior é que andam a importar fruta para vender nos supermerca­dos

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EDIÇÕES NOVEMBRO
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Manuel Rui

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