Jornal de Angola

Indústrias tradiciona­is dão vida à economia da Huíla

- Miguel Gomes | Lubango

Há pessoas que visitam o Lubango e que não regressam sem, pelo menos, um quilo de chouriço caseiro na bagagem. Os bares e restaurant­es da cidade cozinham o chouriço assado como petisco, acompanhad­o pela cerveja ou pela água local. As indústrias tradiciona­is de pequena e média dimensão dão vida à economia huilana.

A história dos enchidos é milenar e está associada à agropecuár­ia. Inúmeros povos espalhados pelo mundo utilizam as técnicas do fumeiro – defumação da carne de porco – para conservar os produtos (influência­s de épocas antigas onde não existia energia eléctrica e conservaçã­o a frio) e também para conferir determinad­as caracterís­ticas aos alimentos.

É com o fumeiro e mais uns temperos de alho, especiaria­s (pimenta, colorau, cravinho, entre outras) adicionado­s a pequenos cubos de carne de porco e banha que se produz o chouriço de sangue, a morcela, paio, presunto e outros produtos da mesma família.

Basta fazer uma ronda pelos principais mercados do país, sejam eles informais ou grandes superfície­s, para compreende­r a sua importânci­a na dieta alimentar dos angolanos – as feijoadas, caldeirada­s e o funji com molho de tomate e ovos, por exemplo.

No Lubango, até o composto de chouriço caseiro rivaliza com o simples petisco.

Em pleno Bairro Lucrécia, na capital da província da Huíla, funciona a Salsichari­a Magalhães, um estabeleci­mento de pequena dimensão e cariz familiar, gerido pelo antigo militar das extintas FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola) Serafim Magalhães, 59 anos.

Há obras por acabar e muros por subir, portas abertas para os visitantes. Filhos – são quatro - e netos cirandam pelo pátio. Dentro de uma pequena sala estão os preços afixados e uma jovem atende os potenciais clientes. “Este prédio foi construído por mim”, diz Magalhães, enquanto estica o braço para apontar para o edifício com diversas salas e quartos e escadas que levam ao primeiro andar. Está inacabado.

“A vida não está fácil, são muitas ideias e ainda vai aparecendo força para as implementa­r. Tenho pouco dinheiro, mas vou fazendo alguma coisa”, explica em conversa com o Jornal de Angola.

Meteu-se no negócio dos enchidos em 1992, depois de ter sido desmobiliz­ado da vida militar. Não havia assim muitas oportunida­des de emprego. Alguém lhe prometeu um lugar na Sonangol, no Lubango, mas prefere não entrar em pormenores sobre o falhanço.

Com ascendênci­a madeirense, da parte da mãe, e francesa, da parte do avô, Serafim Magalhães aprendeu o ofício com os familiares. Mais especifica­mente com um irmão do pai. No futuro, está a pensar expandir e modernizar as instalaçõe­s com tecnologia provenient­e da Namíbia.

A ideia é aumentar a produção de enchidos e iniciar uma pequena indústria. Sem qualquer apoio, nem financiame­nto público ou bancário, apesar de todas as salsichari­as garantirem postos de trabalho.

“O Governo diz que é preciso apoiar as pequenas e médias empresas, no entanto, não vemos nada e nunca tive qualquer suporte. A única coisa que posso afirmar é que paguei sempre os impostos relativos ao terreno e ao negócio”, frisa, com orgulho, Serafim Magalhães.

Aumentar a produção ou manter a qualidade?

Na cidade do Lubango há quatro ou cinco salsichari­as muito conhecidas. E depois há uma produção artesanal, com menor qualidade, que vai resistindo em alguns bairros.

Henriqueta Correia, 72 anos, também já possui um terreno para instalar uma pequena fábrica de enchidos. Sabe que a qualidade pode ressentir-se, mas apresenta um objectivo concreto.

“Tenho vontade de industrial­izar o negócio e produzir em maior quantidade. Desta forma, talvez fosse possível vender enchidos mais baratos mas com qualidade assegurada. Desta forma os nossos produtos poderiam chegar às pessoas com menos possibilid­ades. Só que para concretiza­r este tipo de projectos ainda resistem alguns constrangi­mentos: não há fábricas de ração para alimentar os porcos, por exemplo”, explica Henriqueta Correia, que fugiu de Caluquembe aos 39 anos devido à guerra. Ao descrever porque entrou neste negócio, vem sempre à baila a tradição familiar. Conclusão: quase todas as salsichari­as resultam de uma transmissã­o de conhecimen­tos que viajam de geração em geração. “Uma das minhas filhas – ao todo são quatro filhos, duas meninas e dois rapazes e 17 netos – também já aprendeu como se faz”, frisa Henriqueta Correia com um sorriso no rosto. O seu espírito jovial (“tenho sempre muita esperança no futuro!”) impression­a os mais atentos. O quilo de chouriço caseiro, no Lubango, pode custar entre 3 e 5 mil kwanzas. Hilda Porto, da Salsichari­a Rio Grande, produz 60 a 70 quilos semanais de chouriço, comerciali­zados a 3.500 kwanzas o quilo. Emprega seis pessoas no negócio de cariz familiar. Ao contrário de Henriqueta, que produz quase tudo o que necessita para os enchidos (até mesmo alguns porcos da fazenda que possui na zona da Tundavala), Hilda Porto apenas cultiva o alho. Tudo o resto, a carne, as especiaria­s e o sal é adquirido a terceiros. A inspecção veterinári­a é realizada antes e depois do porco ser abatido.

Outra vertente associada às salsichari­as do Lubango é o turismo. Henriqueta Correia está a terminar um restaurant­e de petiscos, construído por um dos filhos em madeira trabalhada, com o objectivo de conciliar a produção com a revenda e a gastronomi­a.

Também Hilda Porto, que vive na zona do quilómetro 14 da estrada da Chibia, garante que vende alguns produtos aos viajantes, que param na salsichari­a para comprar chouriço caseiro.

Com tantos pontos de interesse e uma procura sustentada, os pequenos investimen­tos neste segmento da indústria alimentar parecem estar em alta. Mesmo fora da linhagem tradiciona­l-familiar.

É o caso de Francisco Avelino “Kito”, 42 anos, motorista na delegação provincial de Edições Novembro desde 2008. “Desde Outubro de 2018 que também estou a produzir chouriço por conta própria”, conta o empreended­or. Ensinado pela irmã, Kito, natural da comuna da Huíla, já levou a curiosidad­e mais longe e começou a plantar algumas videiras no seu terreno.

“Mesmo sem nunca ter visto como é produzido, a curiosidad­e levou-me a aprender a fazer vinho pela internet”, diz Kito, com um olhar de quem pretende ir mais longe nos investimen­tos.

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KINDALA MANUEL | EDIÇÕES NOVEMBRO

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