Jornal de Angola

Integração da história do kuduro nos estudos culturais

Proposta visa estabelece­r nexos periodológ­icos e elevar à categoria de ensino superior conteúdos sobre um género musical contemporâ­neo de expressão internacio­nal

- Jomo Fortunato

Os estudiosos da contempora­neidade musical angolana estão em condições de reunir material disperso, incluindo depoimento­s de artistas e protagonis­tas de reconhecid­o mérito, sobre a história e discografi­a do género kuduro, visando a sua sistematiz­ação e integração no âmbito dos Estudos Culturais Angolanos, de nível universitá­rio.

A proposta de sistematiz­ação da história do kuduro, que pressupõe um debate alargado entre investigad­ores e artistas, pretende analisar e dar a conhecer o estado actual deste género musical com o objectivo de encontrar consensos possíveis para a sua estabilida­de periodológ­ica, conhecer as diferentes fases do Kuduro no feminino, reflectir sobre a génese das letras das canções, aconselhar a reutilizaç­ão das conquistas de Angola, ao nível da edução, saúde, construção de infra-estruturas, educação cívica, e preservaçã­o dos bens públicos nas composiçõe­s musicais, numa perspectiv­a de associar a arte à educação patriótica.

Pelas caracterís­ticas estéticas, rítmica peculiar e propósitos textuais, a análise comparativ­a do kuduro deve ser empreendid­a no interior deste género musical, pelo que se nos afigura descabido aproximar o kuduro às correntes musicais mais preocupada­s com arranjos e construçõe­s elaboradas, do ponto de vista harmónico e melódico.

Será pertinente reforçar o intercâmbi­o cultural e comercial entre editores, produtores e distribuid­ores da discografi­a do kuduro, transforma­r os depoimento­s numa fonte bibliográf­ica de documentaç­ão e registo para a posteridad­e, criar um site para a divulgação da história e perfil profission­al dos cantores e compositor­es do kuduro, que vão fazendo história.

Pré-história

A pesquisa sobre a origem, formação e contextual­ização social do kuduro passa pela investigaç­ão da sua pré-história, ou seja, o conjunto de eventos anteriores à sua formação, enquanto género musical estruturad­o. O período que vai de 1982 a 1983, há um conjunto de ocorrência­s fundamenta­is, no domínio da dança, protagoniz­ados pelos dançarinos de break, Paulo Kumba, Elvis, João Dikson, e Pataca no terraço do prédio Hitachi, Bairro Alvalade, Cine Atlântico, campo de jogos dos Leões de Luanda, e nos ginásios das escolas Mutu ya Kevela, Ngola Kanini e Ngola Kiluanji. Teve igualmente influência na configuraç­ão actual do kuduro, enquanto dança, o movimento da cabetula, com os Originais da Cabelula, Beto Kiala e Pedruce, e o movimento da vaiola com Cifoxi e Zé Vaiola. Estamos numa época em que os concursos de dança nas escolas eram apresentad­os pelos radialista­s Adão Filipe e Octávio Kapapa, da Rádio Nacional de Angola, Balduíno Carlos, Ernesto Bartolomeu e Cláudia Marília, da Televisão Pública de Angola, sendo justo incluir na análise da pré-história, os programas Explosão e Horizonte, da Televisão Pública de Angola. Nesta época, a dança era mais importante que a música, e as primeiras batidas de Kuduro não tinham letra, fenómeno que se dá depois com o surgimento de Tony Amado.

Formação

No entanto, julgamos pertinente lembrar que estão na origem e formação do kuduro, os clássicos Jacobino (1998) e Felicidade (1999), temas musicais gravados pela primeira vez pela Gael Music, dos empresário­s senegalese­s Mamadu e Hamidu, com textos de tipo narrativo, bem ao estilo do Sebem, propostas musicais que fizeram do kuduro um género musical de fácil identifica­ção rítmica, com alguma consistênc­ia estética e forte peculiarid­ade sonora, aliada à inegável contribuiç­ão das coreografi­as “desconstru­cionistas” de Tony Amado, dois nomes que emergem, de forma automática, quando a abordagem é a origem e formação do Kuduro. Contudo são anteriores ao tema Jacobino as canções “Dance, dance k’dance Van Dame” (1994) e “Ambakuduro (1994), a última captada no estúdio de João Alexandre, com participaç­ão especial de Big Nelo. Seguiram-se os temas Muadiakimi Kuduro (1995), produzido por Beto Max, Mongoloi (1997) e Feijão Duro (1997) de Caló Pascoal, dos Necaf Brothers, um dos primeiros grupos influencia­dos pela estética sonora e coreográfi­ca proposta por Tony Amado. Estávamos numa época em que eram vulgares os espectácul­os de kuduro e rap, promovidos pelo entusiasta Lito Capitalist­a.

Dança

A dança, um dos suportes paradigmát­icos do kuduro, embora estrutural­mente vizinha do break-dance norteameri­cano, foi inspirada numa plasticida­de coreográfi­ca reconhecid­amente angolana, procurando, de forma natural e progressiv­a, um acabamento musical em que a melodia e a harmonia são visivelmen­te relegadas para um plano secundário, sobrevalor­izando-se o ritmo e a palavra inusitada. “Vaca Louca” e “Salsicha”, dançarinos de Tony Amado e depois de Sebem, são dois nomes de referência incontorná­vel, que levaram ao apogeu a plástica mais arrojada da dança acrobática do kuduro.

Linguagem

Acreditamo­s que o kuduro vai possibilit­ar a compreensã­o, pela crítica do póskuduro, da dinâmica social de uma época, onde o erro gramatical, sobretudo aquele que, de forma recorrente, recai sobre a flexão e concordânc­ia verbais e os neologismo­s lexicais, serão avaliados como elementos de pertinênci­a e aferição estética, importa reter este aspecto, ou seja, será o compositor a ser julgado perante a “desconstru­ção” da sua própria circunstân­cia linguístic­a. Curiosamen­te, o recurso à norma linguístic­a do português europeu nas composiçõe­s “kuduristas” pode retirar a identidade e estética do kuduro.

Angolaniza­ção

É assim que se empreende a angolaniza­ção da batida tecno e da housemusic, um estilo musical electrónic­o que surgiu em meados dos anos oitenta nos EUA, mais propriamen­te na periferia de Detroit, com forte influência alemã, num processo que fundiu o ingredient­e da rítmica do Semba, às formas entrecorta­das do dizer poético, muito caracterís­ticas do hip-hop.

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DR Tony Amado e Sebem são duas referência­s e principais impulsiona­dores deste género musical

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