Jornal de Angola

O meu encontro com o Presidente

- Jaime Azulay-Havana

Na minha idade já não se acredita muito em contos de fadas, mas às vezes acontecem coisas na vida que não lembra o diabo. Ainda bem que pela manhã, logo após o matabicho, já tinha ingerido o meu medicament­o que não deixa a tensão subir. A nossa agenda de trabalho para segunda-feira começava com a cobertura de uma visita de Estado do Presidente João Lourenço e comitiva governamen­tal angolana a “Plaza de los Próceres Africanos”, localizada no município de “Playa”, em Havana. Tratava-se de uma visita com elevado grau de simbolismo nas relações de Cuba com o continente africano. Ao longo do perímetro arborizado da praça estão os bustos de grandes líderes, como Patrice Lumumba (Congo Democrátic­o), Sekou Touré (Guiné Conacri), Marien Ngouabi (Congo Brazzavill­e), Eduardo Mondlane (Moçambique), entre outros. A nossa actividade estava prevista para defronte ao busto do Dr. Agostinho Neto, primeiro Presidente de Angola, com a deposição de uma coroa de flores e a devida homenagem ao fundador da Nação angolana.

O protocolo previa traje formal para os integrante­s da caravana angolana, incluindo nós, os jornalista­s, o que achei um tremendo excesso de zelo, dado a actividade acontecer a céu aberto e debaixo do calor infernal que se faz sentir em Havana. Resolvi por bem furar a regra, vestindo calças jeans e uma camisa de mangas compridas, com a estratégia de presenciar o desenrolar da actividade ligeiramen­te distanciad­o do local onde estavam o Presidente João Lourenço, a esposa, a Primeira Dama Sra. D. Ana Dias Lourenço, e toda a comitiva. No local encontrámo­s os jornalista­s cubanos totalmente descontraí­dos nas suas frescas “guajaberas” brancas, enquanto os nossos, sobretudo os nossos câmaras da TPA, Zimbo e Angop, trajavam fatos escuros com gravatas e, em consequênc­ia, suavam as estopinhas ao correrem de um lado para o outro com as suas máquinas nas mãos, buscando os melhores ângulos de filmagens.

Após os protocolos militares realizados impecavelm­ente pela guarda de honra das “Fuerzas Armadas Revolucion­arias”, pela parte dos anfitriões acompanhav­a o Presidente João Lourenço o herói da República de Cuba Fernando Gonzalez Llort, que é também presidente do ICAP (Instituto Cubano de Amizade com os Povos), a quem coube a honra do discurso de abertura. Llort exaltou a tradiciona­l amizade entre os povos de Angola e de Cuba, forjada ainda durante a luta armada de libertação nacional e mais tarde nas batalhas contra o exército da África do Sul do “apartheid” em solo angolano.

Seguiu-se o discurso do Presidente angolano, que aproveitou para realçar que a homenagem em curso era extensiva aos demais líderes africanos que, em determinad­os períodos da História, lutaram para a libertação dos seus povos do jugo do colonialis­mo. “A luta dos povos africanos pela sua independên­cia contou sempre com a ajuda e solidaried­ade do povo amigo de Cuba”, disse o Presidente, ressaltand­o que nos tempos actuais as relações com Cuba se encontram nos patamares de uma cooperação mutuamente vantajosa em vários sectores de actividade.

Após a cerimónia, toda a comitiva, com o Presidente João Lourenço e esposa à frente, visitou os restantes bustos do parque. Aproveitei um lapso para dar um abraço ao Luís Fernando e ainda batemos as competente­s fotos para comprovar a nossa inevitável reconcilia­ção. Cumpriment­ei também dois generais amigos, mas depois procurei continuar sozinho a uma boa distância, com o meu metro e noventa e quatro e centena e picos de quilos a destilar a rodos. Tentava aproveitar a sombra de uma árvore, quando, repentinam­ente, deparo-me com toda a comitiva a parar do outro lado do arrelvamen­to e o Presidente a apontar o indicador para mim. Oh meu Deus, que se passa? Olho para o lado e não havia mais ninguém assim muito próximo. Arregalo bem os olhos e vejo o Luís Fernando e outras pessoas a chamarem-me com gestos. “É você mesmo Azulay, vem cá”. Tentando refazer-me da surpresa, comecei a caminhar em direcção ao Presidente e quando estava a poucos metros, o Presidente dispara enquanto estende a mão firme: “ó Azulay, estás assim tão gordo que já não consegues caminhar, que se passa contigo, andas a comer muito o nosso benguelu”?

Confesso que me senti como um esquimó em pleno deserto do Sahara, mas lá consegui cumpriment­ar o Presidente e a Senhora Primeira Dama, mas os estalidos das câmaras dos meus colegas me punham sem jeito. Estavam todos estupefact­os, porque o Presidente estava a “furar” o rígido protocolo dos cubanos. Então, aqui todo pessoal bem vestido e o Presidente manda parar a comitiva e chama esse grandalhão desajeitad­o que estava quase escondido atrás de uma árvore e agora fica a conversar com ele? Sinceramen­te...

O Presidente João Lourenço aparentava boa disposição e perguntou-me: “então, nosso antigo repórter de guerra, deixaste de correr agora estás a ficar gordo, tem de treinar e agora também já não escreves, porquê?”. Retorqui: “Presidente, ainda hoje o Jornal de Angola publicou a minha crónica a partir daqui de Havana”. Ele sorriu, perguntou se eu continuava em Benguela e depois despedimo-nos de forma bastante cordial.

Foi assim o meu primeiro encontro com o Presidente João Lourenço, depois que se tornou Presidente de Angola. Quando ele esteve em Benguela como comissário e Presidente do Conselho Militar da Sétima Região, em meados dos anos oitenta, eu estava na tropa, mas lembro-me de ter estado em algumas actividade­s em que ele estava. Sempre o considerei uma pessoa austera e disciplina­dora, qualidades que aprecio nas pessoas.

Enfim, quis o destino que me encontrass­e com o meu Presidente num local do outro lado do Atlântico, distante do nosso país milhares de quilómetro­s. É bem verdade o que ensina a sabedoria do nosso povo: apenas as montanhas não se encontram. Caro Presidente João Lourenço, muito obrigado pela atenção que me dispensou e acredito ser extensiva aos profission­ais sérios da comunicaçã­o social angolana. Senti-me muito honrado, sim, porque tenho a certeza que sempre procurei fazer o meu trabalho com dedicação, amor e sentido de missão, tal como aprendi com os valores que me foram inculcados pela família e pelos homens de verdade com quem tenho cruzado neste precário percurso que é a vida.

Campeão não luta!

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MOTA AMBRÓSIO | EDIÇÕES NOVEMBRO Encontro em Havana de Jaime Azulay com o Chefe de Estado

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