Jornal de Angola

O sorriso da Piveth

- Adriano Mixinge

Vi-a nas páginas de necrologia do Jornal de Angola como se fosse a primeira vez que a via: nunca vi alguém a sorrir sobre o negro e o branco acinzentad­o papel daquela secção tão tétrica. Tu apareceste lá, já noutra dimensão, como quem fizera tudo o que esteve ao seu alcance para impedi-lo, sem nunca se ter resignado à doença e nós fomos testemunha­s do teu silêncio, do teu sofrimento e da tua coragem. Gostavas de rir às pequenas coisas da vida e quando chegou o momento mais adverso, naquele dia em que te diagnostic­aram um cancro de mama triplo negativo, um dos menos frequentes, um dos mais raros e dos mais agressivos, ficaste desorienta­da, abriste bem os teus olhos, eles brilharam e, de repente, o teu rosto ficou sério: eu sabia que lutarias até ao fim, nos limites impostos pela ciência e pelo Divino. E lutaste. Desde aquele dia cinzento para nós os três – tu, a Rosa e eu -, lá em casa, no início da Primavera mais triste que viveríamos, em Madrid, decidiste outras coisas: que havia pessoas, – a tua querida avó, a tua mãe e a tua filha mais velha -, algumas das que mais amavas, com quem evitarias partilhar a dor de uma travessia com um desfecho (quase) anunciado. A estas pessoas e outros familiares e amigos lhes privarias de um sofrimento contínuo, que se prolongari­a pouco menos de ano e meio até ao dia em que, nas páginas do JA, apareceria­s a sorrir à morte como o fizeras à vida. Foi o mesmo sorriso que esboçaste desde criança e eu, que na época não vivia em Angola, só o vi mais tarde, quando já tinhas três anos de idade. Celeste Marília Mixinge António: bela, justa e inteligent­e foste desde sempre, quando ainda não sabíamos que terias vários nomes carinhosos – Marília, Mbiripsi, Lia. Gostavas de contabilid­ade e de gestão, formaste-te cedo, passaste pelo Instituto Médio de Economia de Luanda (IMEL) e pela Universida­de Lusíada de Angola e, depois, trabalhast­e na Comissão Nacional Eleitoral (CNE), na Gesterra e foste até cofundador­a e sócia-gerente da empresa MV – Aliança, Auditoria e Contabilid­ade, Lda. Com uma vida austera e nada espalhafat­osa, eras capaz de reduzir tudo a números, sem perder nunca o pragmatism­o e a rapidez de quem nunca perdeu de vista que, como gostavas de dizer, “a vida é urgente”. Também não perdias a ternura da fala sossegada, mas firme. Sabias muito bem o que querias e o que não querias, afrontavas tudo com disciplina e profission­alismo. Com os anos, o notamos já desde a adolescênc­ia, ensinaste-nos a ser irmã quando era suposto seres sobrinha, provaste que é possível ser cunhada, irmã e amiga das tuas cunhadas, mostraste-nos como ser amiga quando devias ser a neta, soubeste ser esposa e amiga ou mesmo, até certo ponto, a seres mãe da tua mãe e do teu pai quando se esperava que fosses a filha ou a irmã. Também não tiveste nenhum problema em ser a irmã quando esperavam que fosses só uma amiga, mas, em todos os casos, foste sempre leal. Em tudo, foste a minha confidente preferida. Mas, também, foste a preferida de muitos, mas, já não viste as pessoas que foram lá, no velório e no cemitério de Santa Ana, dizer-te o último adeus e nós, família, naquele dia, descobrimo­s que tu, que vivias como uma escuteira, afinal, eras uma luz. O trabalho, a família e as viagens foram paixões que desfrutast­e sempre sorridente, com uma alegria lúcida, a pensar sempre no próximo desafio que enfrentari­as. Foste tão lúcida que até os escuteiros, estes que até certo ponto foram injustos e ingratos contigo em vida, estes mesmos que te proibiram que usasses o lenço deles quando te divorciast­e, estes que preferem a hipocrisia dos matrimónio­s falhados à coerência do divórcio salutar e amigável, eles foram lá enterrar-te com orgulho de ter-te conhecido e nós, família, agradecemo­s, enquanto tu sorrias nas páginas a preto e branco da secção de necrologia do Jornal. Foste tão nobre que, com o mesmo sorriso de quem não tinha nada mais a perder, lutaste e entregaste o teu corpo à ciência e à pesquisa, disposta a salvar ou a ajudar para que outros, no futuro, se salvem, uma vez que não havia nenhuma mulher jovem e negra na população sob investigaç­ão no ensaio clínico do hospital espanhol que tão bem te acolheu, antes de vires a Luanda sofrer as inúmeras carências e as limitações do Instituto de Oncologia, ao lado do teu leal marido. Agora que já não estás fisicament­e entre nós, os dias passam mais lentamente, a dor é enorme. Nunca pensei que teria que escrever sobre o teu sorriso visto numa página de necrologia, nem que não estarias nunca mais por perto: agarrei-me à ideia de que a Medicina não é propriamen­te uma ciência exacta. Confesso que, no fundo, mantive a esperança de que o cancro triplo negativo não fosse fulminante, mas foi. Atrevime a pensar que seria desta vez que Deus a quem dedicaste uma boa parte da tua vida, interceder­ia por ti e por nós, mas Ele também não o fez. Na memória colectiva de família estarão incrustado­s para sempre os melhores momentos que passamos juntos e para nosso desconsolo, lá também estará o teu inesperado sorriso, o mesmo que apareceu afixado nas páginas de necrologia do

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