Endogenidade e formação da angolanidade
As sociedades são dinâmicas e o processo de formação e fixação dos diferentes grupos etnolinguísticos, bem como ainda de várias outras comunidades são, de acordo com o sociólogo angolano Victor Kajibanga, o resultado “de uma história e tradição milenares de mestiçagem biológica e cultural endógenos”. Contudo, este aspecto é subestimado pelos defensores do “luso-tropicalismo”, da teoria da “crioulidade” e também, muito possivelmente, de forma consciente ou inconsciente, por autores de alguns textos apologéticos do conceito de “lusofonia”. Já antes, os defensores da “portugalidade” e da “multirracialidade” ignoraram o princípio de endogeneidade.
Pinharanda Gomes, um “filósofo nativista português” e um dos grandes defensores da “portugalidade”, na página 11 do seu livro «Fenomenologia da Cultura Portuguesa», publicado em 1969, chegou a defender o seguinte: “(…) a invenção do mestiço era o facto mais importante da colonização portuguesa; o mestiço era a vida necessária ao aparecimento da nova cultura portuguesa; o mestiço seria a ponte de união geográfica de Portugal e o mundo por ele colonizado”. Teses “absurdas e marginais”, que, na opinião de Victor Kajibanga, “propõem um discurso de raça (melhor dizendo, um discurso de consciência de raça dos mestiços) para o entendimento da especificidade da sociedade angolana contemporânea”, em que “a crioulidade é vista como princípio fundador da angolanidade”.
Já o etnólogo português José Redinha, através de um texto propedêutico, escrito em 1971 e inserido na 9ª edição do mapa étnico de Angola, havia registado o seguinte: “a difusão do contorno por cruzamento das manchas étnicas em contacto; as submissões dos grupos mais fracos à designação grupal dos mais fortes; as sucessões de chefia com alternância étnica; a naturalização voluntária de diversos grupos em grupos culturais mais evoluídos; o grande número de enclaves de diversas fracções étnicas no corpo de outras etnias; a acentuada sinuosidade de colónias nas barbaduras étnicas. A adopção de línguas de alguns grupos dominantes também influi na face das cartas étnicas, porque, se bem que este fenómeno não signifique transformação da personalidade basal dum determinado grupo, não deixa de ser muito importante, em presença do método de classificação etno-linguístico em uso. É de se prever que novos etnonícos se terão de vir a criar para a classificação de novas situações etno-sociológicas, linguísticas e culturais. A vida de relação comum, a divulgação crescente da língua portuguesa, são factores de dinâmica social a incluir neste movimento geral irreversível, muito incrementado pelo desenvolvimento urbanístico, da economia, da cultura, e das concentrações populacionais.”
Todavia, Gilberto Freyre, em «O luso e trópico. Sugestões em torno dos métodos portugueses de integração de povos autóctones e de culturas diferentes da europeia num complexo novo de civilização: o luso-tropical», afirmou que os portugueses, teriam utilizado, ao contrário de outros europeus, “métodos de integração” no sistema de relações sociais e não de subjugação ou mesmo de assimilação: “Integração significa, em moderna linguagem especificamente sociológica, aquele processo social que tende a harmonizar e unificar unidades diversas ou em conflito (…) Integrar quer dizer (…) unir unidades separadas num todo coeso, um tanto diferente da pura soma de partes, como se verifica quando tribos ou estados e até nações diferentes passam a fazer, de tal modo, parte de um conjunto, seja nacional ou transnacional, que dessa participação resulta uma cultura, se não homogénea, com tendência a homogénea, formada por traços mutuamente adaptados – ou adaptáveis uns nos outros. Assim compreendida a integração contrasta com a subjugação (…) contrastando também com a própria assimilação”.
Mas, tal como Mário Pinto de Andrade, também Victor Kajibanga e Gerald Bender afirmam, que esta “integração” dizia apenas respeito à europeização dos africanos e não o inverso. Sempre que os valores e os padrões de vida africanos influenciavam os portugueses, isso era considerado um retrocesso e, apesar de só se descobrir o que já existe, esta deverá ser, muito possivelmente, uma herança da noção dos descobrimentos (e dos encobrimentos) portugueses. A propósito de os valores e os padrões de vida africanos que influenciam os portugueses serem considerados um “retrocesso”, Gerald Bender cita Allen Isaacman e Bárbara Isaacman, em «The Prazeros as Transfrontiersmen: A Study in Social and Culture Change» [Os Prazeros como homens trans-fronteiriços: um estudo sobre mudança social e cultural].
Este estudo esboça a evolução dos portugueses e dos seus descendentes que, em meados do século XVIII, fundaram territórios da Coroa, nos chamados “prazos”, situados no interior do vale do Zambeze. Ao fim de século e meio, a “africanização” destes “prazeiros” foi tão completa, que, antes da Conferência de Berlim (1984-1885), formaram alianças com chefes zambezianos para expulsar os portugueses da região. Certo “prazeiro” escreveu uma vez: “Devemos expulsar todos os portugueses e aliar-nos com os Ingleses, que se mostram favoráveis às aspirações dos Africanos”. A Associação dos Estudos Africanos – African Studies Association – atribuiu, em 1973, o Prémio Herskovits a este trabalho científico.
No seu livro «A Invenção de África – Gnose, Filosofia e a Ordem do Conhecimento», Valentin Mudimbe, filósofo da República Democrática do Congo, referiu que identidade e alteridade “são sempre dadas a outros, assumidas por um Eu ou Nós-sujeito, estruturadas em diferentes opiniões e expressas ou silenciadas de acordo com desejos pessoais face a uma episteme”.