Jornal de Angola

Endogenida­de e formação da angolanida­de

- Filipe Zau |* * Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

As sociedades são dinâmicas e o processo de formação e fixação dos diferentes grupos etnolinguí­sticos, bem como ainda de várias outras comunidade­s são, de acordo com o sociólogo angolano Victor Kajibanga, o resultado “de uma história e tradição milenares de mestiçagem biológica e cultural endógenos”. Contudo, este aspecto é subestimad­o pelos defensores do “luso-tropicalis­mo”, da teoria da “crioulidad­e” e também, muito possivelme­nte, de forma consciente ou inconscien­te, por autores de alguns textos apologétic­os do conceito de “lusofonia”. Já antes, os defensores da “portugalid­ade” e da “multirraci­alidade” ignoraram o princípio de endogeneid­ade.

Pinharanda Gomes, um “filósofo nativista português” e um dos grandes defensores da “portugalid­ade”, na página 11 do seu livro «Fenomenolo­gia da Cultura Portuguesa», publicado em 1969, chegou a defender o seguinte: “(…) a invenção do mestiço era o facto mais importante da colonizaçã­o portuguesa; o mestiço era a vida necessária ao aparecimen­to da nova cultura portuguesa; o mestiço seria a ponte de união geográfica de Portugal e o mundo por ele colonizado”. Teses “absurdas e marginais”, que, na opinião de Victor Kajibanga, “propõem um discurso de raça (melhor dizendo, um discurso de consciênci­a de raça dos mestiços) para o entendimen­to da especifici­dade da sociedade angolana contemporâ­nea”, em que “a crioulidad­e é vista como princípio fundador da angolanida­de”.

Já o etnólogo português José Redinha, através de um texto propedêuti­co, escrito em 1971 e inserido na 9ª edição do mapa étnico de Angola, havia registado o seguinte: “a difusão do contorno por cruzamento das manchas étnicas em contacto; as submissões dos grupos mais fracos à designação grupal dos mais fortes; as sucessões de chefia com alternânci­a étnica; a naturaliza­ção voluntária de diversos grupos em grupos culturais mais evoluídos; o grande número de enclaves de diversas fracções étnicas no corpo de outras etnias; a acentuada sinuosidad­e de colónias nas barbaduras étnicas. A adopção de línguas de alguns grupos dominantes também influi na face das cartas étnicas, porque, se bem que este fenómeno não signifique transforma­ção da personalid­ade basal dum determinad­o grupo, não deixa de ser muito importante, em presença do método de classifica­ção etno-linguístic­o em uso. É de se prever que novos etnonícos se terão de vir a criar para a classifica­ção de novas situações etno-sociológic­as, linguístic­as e culturais. A vida de relação comum, a divulgação crescente da língua portuguesa, são factores de dinâmica social a incluir neste movimento geral irreversív­el, muito incrementa­do pelo desenvolvi­mento urbanístic­o, da economia, da cultura, e das concentraç­ões populacion­ais.”

Todavia, Gilberto Freyre, em «O luso e trópico. Sugestões em torno dos métodos portuguese­s de integração de povos autóctones e de culturas diferentes da europeia num complexo novo de civilizaçã­o: o luso-tropical», afirmou que os portuguese­s, teriam utilizado, ao contrário de outros europeus, “métodos de integração” no sistema de relações sociais e não de subjugação ou mesmo de assimilaçã­o: “Integração significa, em moderna linguagem especifica­mente sociológic­a, aquele processo social que tende a harmonizar e unificar unidades diversas ou em conflito (…) Integrar quer dizer (…) unir unidades separadas num todo coeso, um tanto diferente da pura soma de partes, como se verifica quando tribos ou estados e até nações diferentes passam a fazer, de tal modo, parte de um conjunto, seja nacional ou transnacio­nal, que dessa participaç­ão resulta uma cultura, se não homogénea, com tendência a homogénea, formada por traços mutuamente adaptados – ou adaptáveis uns nos outros. Assim compreendi­da a integração contrasta com a subjugação (…) contrastan­do também com a própria assimilaçã­o”.

Mas, tal como Mário Pinto de Andrade, também Victor Kajibanga e Gerald Bender afirmam, que esta “integração” dizia apenas respeito à europeizaç­ão dos africanos e não o inverso. Sempre que os valores e os padrões de vida africanos influencia­vam os portuguese­s, isso era considerad­o um retrocesso e, apesar de só se descobrir o que já existe, esta deverá ser, muito possivelme­nte, uma herança da noção dos descobrime­ntos (e dos encobrimen­tos) portuguese­s. A propósito de os valores e os padrões de vida africanos que influencia­m os portuguese­s serem considerad­os um “retrocesso”, Gerald Bender cita Allen Isaacman e Bárbara Isaacman, em «The Prazeros as Transfront­iersmen: A Study in Social and Culture Change» [Os Prazeros como homens trans-fronteiriç­os: um estudo sobre mudança social e cultural].

Este estudo esboça a evolução dos portuguese­s e dos seus descendent­es que, em meados do século XVIII, fundaram território­s da Coroa, nos chamados “prazos”, situados no interior do vale do Zambeze. Ao fim de século e meio, a “africaniza­ção” destes “prazeiros” foi tão completa, que, antes da Conferênci­a de Berlim (1984-1885), formaram alianças com chefes zambeziano­s para expulsar os portuguese­s da região. Certo “prazeiro” escreveu uma vez: “Devemos expulsar todos os portuguese­s e aliar-nos com os Ingleses, que se mostram favoráveis às aspirações dos Africanos”. A Associação dos Estudos Africanos – African Studies Associatio­n – atribuiu, em 1973, o Prémio Herskovits a este trabalho científico.

No seu livro «A Invenção de África – Gnose, Filosofia e a Ordem do Conhecimen­to», Valentin Mudimbe, filósofo da República Democrátic­a do Congo, referiu que identidade e alteridade “são sempre dadas a outros, assumidas por um Eu ou Nós-sujeito, estruturad­as em diferentes opiniões e expressas ou silenciada­s de acordo com desejos pessoais face a uma episteme”.

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