Jornal de Angola

A arte de fotografar na objectiva de Francisco Bernardo

- Kindala Manuel

Angola vive um ambiente de paz, fruto de uma conquista que exigiu esforços de vários actores nacionais e estrangeir­os. Estes deram o seu contributo de forma directa e indirecta. Quase a completar 40 anos no exercício da fotografia de imprensa, metade dedicada à cobertura do conflito armado, Francisco Bernardo transmitiu ao mundo, através da informação visual (fotografia), publicada em jornais, revistas e exposições, os grandes momentos da guerra que o país viveu por quase três décadas Como entrou para a fotografia e qual foi a primeira cobertura que fez como repórter de guerra?

Entro na fotografia influencia­do pelo meu irmão mais velho, Manuel Margoso (já falecido) na Empresa Nacional de Fotografia (ENFOTO), pertencent­e ao Departamen­to de Informação e Propaganda (DIP) do Comité Central do MPLA. Em 1981, integro o grupo de jornalista­s que seguiu para uma missão, por estrada, numa coluna militar, com partida de Luanda, passando por Cuanza-Sul, Benguela, Huíla e Cunene. O nosso destino era a Santa Clara. A missão era chefiada pelo então comandante das TGFA, o camarada Kipacassa, auxiliado pelo camarada Paiva, actual comandante da Polícia Nacional no Bengo. O objectivo era elevar o moral da tropa em cada ponto que escalávamo­s, assim como avaliar o estado das fronteiras inter-provinciai­s, sobretudo com a vizinha Namíbia.

Como retratou os acontecime­ntos da Cahama?

Isso foi em 1983. Seguimos pelo DIP, para uma missão à província do Cunene, com a finalidade de reportar os primeiros ataques sul-africanos no município da Cahama. Estava na companhia de um jornalista do JornaldeAn­gola, de nacionalid­ade italiana, Achille Lollo, que era editor da página internacio­nal. Éramos os únicos jornalista­s nesta missão e permanecem­os 45 dias na Cahama. Fomos recebidos pelo capitão “Basta Andar”, que pertencia à engenheira militar. Na primeira missão, a tropa era comandada pelo comandante Farrusco (Joaquim António Lopes) e, na segunda, pelo comandante Salviano Sequeira “Kianda”, actual ministro da Defesa Nacional. Chegámos à Cahama em Agosto, tempo de frio seco. Lá aprendi a fumar charuto cubano. Não resisti ao clima, contrai pneumonia e tive que ser evacuado para o Hospital Central do Lubango, na Huíla, onde fiz o tratamento. Depois de melhorar, tive de regressar à Cahama. Durante um mês e 15 dias, reportei os bombardeam­entos, sobretudo das infra-estruturas destruídas, camiões queimados nas colunas e pessoas mortas. Os feridos, como consequênc­ia dos bombardeam­entos, eram socorridos pelas FAPLA. Posso dizer que a minha experiênci­a como repórter de guerra começou pela Cahama. Para nos camuflar, usávamos fardamento das FAPLA e nos abrigávamo­s nas trincheira­s com os militares. Para que os trabalhos não perdessem actualidad­e, mandávamos os textos e os rolos de avião para Luanda, onde eram editados e publicados no JornaldeAn­gola e na Revista Militar (que pertencia à Direcção Política Nacional das FAPLA). As fotos eram também expostas no Centro de Imprensa Aníbal de Melo, em Luanda.

Passou a ser um repórter militar?

De facto, depois da Cahama, a Direcção Política do DIP enviou-me por duas vezes, entre 1985 e 1987, ao Cuando Cubango, no decurso da "Operação Zebra". Na primeira missão, permanecem­os 45 dias, sob a direcção do brigadeiro José João Manuel “Jota”, da comissão política (é o actual embaixador de Angola na República Democrátic­a do Congo). As t ropas eram comandadas pelo general Fachu. A nossa missão, no Cuando Cubango, era fazer contra-propaganda das informaçõe­s que os sul-africanos emitiam, através das rádios, afirmando que já tinham tomado o Cuito. Este tipo de informaçõe­s era desmentido pelos órgãos nacionais, a RNA, TPA, Revista Militar e o Jornal

deAngola, com os trabalhos que fazíamos no terreno. Pela TPA, no programa Opção, estava o "câmara man" Carlos Campos, "Locas", actual fotógrafo do Presidente da República. Os bombardeam­entos aconteciam a qualquer hora do dia e da noite e tínhamos de nos entrinchei­rar. Os dias de maior terror eram os de "flagelamen­tos" do famoso canhão G5. Lembro que, em 1987, numa das fogueiras do combatente, o convidado foi o músico Jacinto Tchipa, que, com as suas músicas, transmitia esperança à tropa.

Os jornalista­s estavam armados?

Não. A minha arma era apenas a máquina fotográfic­a, que tinha os rolos como munições. Os redactores dispunham apenas de gravadores, lápis e papel. Para a nossa segurança, andávamos na linha de trás dos soldados. Entregávam­o-nos de corpo e alma e tínhamos consciênci­a de que qualquer um de nós podia tombar naquela missão. Mas a esperança pela liberdade estava acima do medo que carregávam­os.

Diante de tantos perigos, o que motivava o grupo?

As visitas de oficiais generais, como o general França Ndalu, chefe do Estado-Maior, na altura, o general Pedro Sebastião, actual ministro de Estado e chefe da Casa de Segurança do Presidente da República, e vários outros oficiais, contribuía­m para a moralizaçã­o da tropa. Para além do sentimento patriótico, tínhamos a certeza que estávamos do lado da verdade e que a paz para Angola e países vizinhos dependia, em grande medida, da nossa vitória contra os sulafrican­os.

Quais foram os piores momentos no Cuito Cuanavale?

As incertezas das emboscadas na travessia dos rios e, sobretudo, os imprevisto­s bombardeam­entos do G5. Eram o nosso maior terror.

Lembra-se de outros jornalista­s no Cuito?

Depois das publicaçõe­s da nossa primeira missão em jornais e revistas, ainda em 1987, integrei o segundo grupo de jornalista­s enviado ao Cuito, com o João Lígio, repórter da TPA, Sebastião Solar, “câmara man” (pai de outro funcionári­o que exercia as mesmas funções nessa estação), Pombal, da Rádio, e José Cambuandi, da Angop. Esta equipa permaneceu apenas uma semana no Cuito, seguindo depois para o Huambo.

Que outras situações o marcaram?

Muitas outras, como o massacre de Camabatela. Aconteceu em Fevereiro de 1986. Na altura, encontrava-me no Uíge, num grupo de jornalista­s que tinha a missão de radiografa­r a província. De repente, fomos orientados a seguir de helicópter­o para o município de Camabatela, província do Cuanza-Norte. Chegados ao local, deparámo-nos com um cenário de terror. Encontrámo­s pessoas cortadas com catana e machado, aos pedaços, da cabeça aos pés. Eram crianças, mulheres grávidas, velhos. Os pedaços estavam espalha

dos por todo lado. Naquele momento, não sabíamos se reportávam­os ou ajudávamos quem ainda respirava e clamava por ajuda e água. Não gosto de falar deste genocídio e creio que os erros da guerra ficaram no esquecimen­to dos angolanos.

Quais foram as repercussõ­es das publicaçõe­s deste massacre?

O massacre de Camabatela mexeu com o país e o mundo. Na época, o Estado angolano fez uma grande exposição fotográfic­a do massacre no Centro de Imprensa Aníbal de Melo, em Luanda, e enviou, em seguida, as imagens para alguns países africanos e à comunidade internacio­nal. As fotografia­s correram o mundo, mobilizand­o países africanos e as Nações Unidas, no sentido de condenar a UNITA, que dizia lutar para a liberdade dos angolanos. Além dos mortos, a imagem de uma madre católica com um bebé ao colo, cujos pais foram mortos neste massacre, chamou igualmente a atenção para a triste realidade.

Também esteve no Zenza do Itombe?

É outro acontecime­nto muito triste que trago na memória. Estive no Zenza do Itombe, em Agosto de 2001, já como repórter fotográfic­o do JornaldeAn­gola, na companhia do jornalista António Paulo, ex-secretário de Estado do MAPTSS, muito jovem na altura. O ataque da UNITA a um comboio, que carregava civis e que seguia de Luanda para o Cuanza-Norte, aconteceu no dia 10 de Agosto e, no dia seguinte, uma enorme equipa de jornalista­s estava no local. Não foi fácil fotografar vagões cheios de pessoas queimadas, entre crianças, mulheres e velhos inocentes. Fotografei corpos carbonizad­os e presos entre as rodas das carruagens. Havia vagões em que só restavam cinzas. Até os ossos estavam totalmente queimados. Lá estavam mais de 240 pessoas, na sua maioria carbonizad­as. Houve jornalista­s que não conseguira­m aproximar-se do local, devido ao forte cheiro. Muitos corpos de pessoas que tentaram escapar das chamas estavam espalhados pelos arredores. Devido ao avançado estadodede­composição, muitos corpos foram enterrados em cemitérios improvisad­os, com as mãos e os pés de fora.

E as repercussõ­es?

O JornaldeAn­gola publicou em destaque uma reportagem de duas páginas, com imagens de pessoas queimadas nos vagões e enterradas com as mãos e pés fora. O ataque ao Zenza do Itombe foi, sem dúvidas, o início do descrédito total da UNITA a nível internacio­nal. À semelhança da divulgação do massacre de Camabatela, o Estado angolano levou, de igual forma, ao conhecimen­to da comunidade internacio­nal, ao ponto de alguns países africanos deixarem de apoiar a UNITA. Dias depois do ataque, o então vice-ministro das Relações Exteriores de Angola, Toco Serrão, anunciava à imprensa a possibilid­ade do Governo levar o líder da UNITA ao Tribunal Internacio­nal, para ser julgado como criminoso de guerra, por genocídio. A então ministra da Família e Promoção da Mulher, Cândida Celeste, organizou uma marcha que percorreu várias artérias de Luanda, em protesto contra o ataque da UNITA. No final da marcha, a ministra leu uma mensagem dirigida ao Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, onde solicitava o desencadea­mento de um processo para levar Jonas Savimbi a julgamento, pelo Tribunal Internacio­nal.

Até que ponto acha que o seu trabalho, enquanto fotojornal­ista, foi valioso?

Desenvolvi um trabalho jornalísti­co que levou informação a nível nacional e internacio­nal. Na luta para a conquista da paz em Angola, os militares combateram usando armas e os jornalista­s transmitin­do informação noticiosa ao mundo. Creio que, de forma directa ou indirecta, todos contribuím­os para a conquista da paz.

Reforma-se enquanto repórter presidenci­al ...

Sou repórter presidenci­al desde o DIP. Entrei para o Jornal

deAngola em 1995, saído da ENFOTO do DIP do Comité Central do MPLA. Cubro actividade­s pelo JornaldeAn­gola desde o antigo Presidente José Eduardo dos Santos. Antes era mais difícil fotografar a comitiva presidenci­al, em função da realidade política que se vivia. Hoje, é mais fácil. O Presidente João Lourenço é comunicati­vo e facilita o trabalho da i mprensa. Em audiências, faz questão de cumpriment­ar e dizer sempre algo aos jornalista­s. Isso transmite humanismo às pessoas que convivem com ele. Algumas vezes, pede opinião aos repórteres de imagem sobre a melhor posição que deve adoptar. Isso i ndica que conhece a importânci­a da imagem. Quando a segurança aperta bastante, o Presidente faz questão de orientar o chefe do Protocolo, no sentido de facilitar o trabalho dos jornalista­s.

Sente que cumpriu a sua missão?

Trinta e oito anos depois, saio de cabeça erguida, com o sentimento de ter cumprido, na medida do possível, a missão que me foi incumbida. A fotografia de imprensa exige bastante contacto físico, domínio técnico da máquina fotográfic­a e também conhecimen­tos apurados de jornalismo. E o fotoj ornalismo deu- me a possibilid­ade de trabalhar nas várias vertentes do jornalismo, entre coberturas de Política, Economia, Desporto, Sociedade e Cultura. A fotografia física tem uma longevidad­e de mais de 150 anos. Com o surgimento da fotografia digital, nos anos 90, penso que deixo um arquivo e um legado que servirá para quem estiver interessad­o em saber sobre acontecime­ntos de Angola nas várias categorias do fotojornal­ismo. Embora esteja na casa dos 60 anos, respiro boa saúde e, se puder reunir as condições desejadas, irei dedicar-me à fotografia artística, retratar a natureza, a cultura, etc, para fins de ensino e exposições.

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Em 1991 esteve em Bicesse para a cobertura dos acordos de paz entre o Governo e a UNITA

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