“Sistema Nacional de Saúde precisa, com urgência, de terapia de choque”
A Assembleia Nacional aprovou em Junho deste ano, na generalidade, a Proposta de Lei sobre Transplante de Tecidos, Células e Órgãos Humanos, diploma que responde à necessidade de assegurar o tratamento de diversas doenças, por esse meio, no território nacional. Em entrevista ao Jornal de Angola, o nefrologista Matadi Daniel defende que o Ministério da Saúde faça um despacho normativo do Registo Nacional do Doador, como forma de operacionalizar as múltiplas questões que se colocam, tanto na vertente ética como no quotidiano da classe médica. Por outro lado, alerta para o facto de a construção de centros de hemodiálise no país constituir um olhar circunscrito à ponta do “iceberg”, face à inexistência de políticas de formação que permitam a extensão dos Serviços de Nefrologia a todo o território nacional. Chama igualmente a atenção para a premência de medidas de detecção precoce das principais patologias que conduzem à Falência Renal Crónica, como prioridade a ter em conta. Propõe uma “terapia de choque” como única forma de curar o Sistema Nacional de Saúde, apelando ao diálogo permanente entre decisores políticos e especialistas do sector, como forma de uns e outros cumprirem as “ingentes tarefas que a nação exige”, no que à saúde diz respeito
Sempre defendeu a necessidade da aprovação da Lei de Transplantes de Células, Tecidos e Órgãos Humanos em Angola. Como vê a aprovação da presente Lei?
A Lei ora aprovada foi inicialmente concebida por um grupo de trabalho do Hospital Militar Principal, em 2002. Dezassete anos depois, é um enorme regozijo constatar a sua aprovação. À nossa dimensão, como dizia Neil Armstrong, foi dado um pequeno passo de gigante. No entanto, há, inequivocamente, um enorme trabalho pela frente, que exigirá capacidade de liderança estratégica e trabalho de equipa multidisciplinar. Mas a situação é gratificante, por se tratar de uma etapa de não retorno.
Até que ponto a aprovação da presente Lei é benéfica para o país?
A transplantação é uma questão de afirmação do nosso país e também de soberania. Não é por acaso que ela teve que ser aprovada pela Assembleia Nacional. Os mais cépticos opõem-se a esse desiderato, com o argumento de que, enquanto tivermos patologias endémicas negligenciáveis, tais como a malária, a tuberculose, a Sida, a tripanossomíase etc, não deveriam dar esse passo. Ora, o combate a essas doenças (infecciosas transmissíveis) faz-se, acima de tudo, com medidas preventivas e de educação para a saúde. Já as patologias não infecciosas, como a hipertensão arterial, a diabetes, as neoplasias e outras doenças endócrinas e do sangue (hematopiéticas), tendem a crescer, sendo essa uma evidência mundial. Por isso, a transplantação é a terapia de eleição para as complicações dessas doenças não transmissíveis. Como sabemos, para o caso da falência renal crónica em Angola, as duas principais causas são a hipertensão arterial e a diabetes Mellitus.
Entre as eventuais desvantagens da aprovação da Lei, não estará a possibilidade de tráfico de órgãos humanos?
É precisamente o contrário. Essa aprovação limita o tráfico de órgãos humanos por esta via. Ficam estabelecidos critérios rígidos, tanto para a doação, tanto em vida, quanto pós-morte. Há também definição do perfil dos hospitais que realizarão o transplante, assim como as colheitas de órgãos e tecidos humanos, clarificando igualmente que, para ocorrer esta colheita de órgãos, seja necessário haver critério de morte cerebral do doente. A equipa que colhe não participa no acto de transplantação. É essencial que haja essa norma, para que se possa fazer a colheita, porque os órgãos têm de estar viáveis com suporte de medicação vaso-activa para permitir uma circulação eficiente do sangue, mantendo níveis de tensão arterial aceitáveis e igualmente suporte ventilatório, para melhor oxigenação do organismo. Tais condições são indispensáveis para a retirada de órgãos e tecidos humanos. Em vida, restringiu-se a doação até parentes de 2º grau. Fomos muito restritivos, devido à enorme população pobre, que poderia ser aliciada à doação, por míseros valores monetários.
Os doentes sem possibilidade de fazer o tratamento no exterior saem a ganhar?
Para o caso da doença renal crónica, as vantagens são incomensuráveis, a começar pela reposição de todas as funções que o rim perdeu, quando o doente é transplantado e a diminuição significativa dos custos de manutenção. Um paciente em diálise gasta cerca de 45 mil dólares/ano. Fazer hemodiálise implica ser medicado com Eritropoeitina, para corrigir a anemia, e ser submetido a tratamento para hipertensão arterial, além da terapia com os calcimiméticos, tendo em conta que o rim deixa de produzir derivados da vitamina D, que ajuda a absorver o cálcio ingerido. A transplantação renal no primeiro ano terá custos globais entre os 45 e 50 mil dólares americanos, baixando no segundo para valores que oscilam entre os seis e oito mil.
Que medidas devem ser tomadas para operacionalizar um programa com essa magnitude?
Tratando-se de assunto de afirmação do Estado angolano, acho que a coordenação estratégica do Programa de Transplantes, nesta fase de implementação, deveria estar sob responsabilidade directa ou indirecta ao mais alto nível da governação, sem desprimor pelo responsável da pasta ministerial. É que não devemos falhar. Creio que não é necessário construir novas infra-estruturas. Devemos aproveitar aquelas em que o Estado fez investimentos. Por outro lado, o Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos deverá aprovar o critério de morte cerebral, devendo o mesmo ser publicado em Decreto Executivo pelo MINSA, antes do Presidente da República assinar e mandar publicar em Diário da República. Isso porque o critério de morte de uma pessoa não deve ser deixado ao livre arbítrio de qualquer profissional.
Então o que acha prioritário?
É necessário que o MINSA faça um despacho normativo do Registo Nacional do Doador. Defendo que a doação pós-morte deveria ser sob “Consentimento Presumido”, isto é, quem em vida não declarou oposição à dádiva seria um potencial doador, desde que houvesse o consentimento da família. Esse não foi o entendimento do MINSA e devemos respeitar. Mas este posicionamento contraria a Declaração de Istambul e as Recomendações de Madrid, que combatem o tráfico de órgãos, embora apelem à maximização da doação. Não estou a ver as pessoas em vida a saírem dos seus aposentos e irem a um centro de registo e declararem que querem fazer a doação, oxalá me engane!
Ainda há muitas ideias por materializar?
Sim. Defendo a criação do Órgão Coordenador de Transplantes, que será o órgão operacional de transplantação. Neste caso, coordenará a equipa multidisciplinar de colheita de órgãos e tecidos, sendo igualmente responsável pela equipa multidisciplinar do transplante em si. Também acho indispensável a criação da “Rede de Coordenação de Colheita de Órgãos e Tecidos, que englobará o INEMA. É necessário definir que hospitais a englobar para a colheita de órgãos, tal como o Coordenador Hospitalar de Doação, que, em minha opinião, deverá ser o responsável dos Cuidados Intensivos, desde que não pertença à equipa de transplantação, por razões éticas. Deve-se também definir elementos funcionais no Centro Nacional de Transplantação, no Centro de Histocompatibilidade e num laboratório com capacidade para dosear as drogas imunossupressoras a serem dadas aos doentes transplantados, já que é necessário baixar a imunidade destes doentes.
Está a sugerir a construção de uma unidade hospitalar?
Não. O Estado deve melhorar as infra-estruturas já existentes, melhorar o internamento com 10 a 15 camas, a unidade de cuidados intensivos com 4 a 6 camas e ter disponíveis pelo menos três blocos operatórios. Será necessário criar uma equipa multidisciplinar de médicos, desde cirurgiões, hematologistas, intensivistas, urologistas, nefrologistas, anestesistas, oftalmologistas, equipa de enfermagem, nutricionistas, psicólogos e fisioterapeutas que o país possui e que precisam de ser capacitados.
É que o sistema actual de “duodecimização” dos recursos financeiros dos hospitais tornou-se absolutamente ineficaz, constituindo um dos grandes factores de estrangulamento na melhoria de atendimento a esse nível. Se é compreensível que os conselhos de administração sejam de conveniência política, já não é compreensível que a gestão clínica obedeça a esse critério. Os directores clínicos deveriam ser eleitos de entre pares, apresentando um programa, podendo exercer até três mandatos de três anos cada, por cada eleição. Isso permitiria maior eficácia e tornaria mais transparente a gestão hospitalar