Nova roupagem para uma mesma estratégia doutrinária
Em “Casa Grande & Senzala”, (Gilberto) Freyre sustenta a sua interpretação psico-cultural da formação da sociedade brasileira numa interpretação pessoal das predisposições de carácter do colonizador português”. Faz o mesmo em “O mundo que o português criou”, mas para um universo geograficamente maior e culturalmente diversificado. Nesta sua obra incluiu os portugueses em todas as partes dos trópicos, coibindo-se, um pouco, quanto aos portugueses em África. Sem conhecimento das novas realidades que coloca como seu objecto de análise, resta-lhe generalizar a partir do caso brasileiro. Esta é a posição defendida pela socióloga portuguesa Cláudia Castelo no seu livro editado em 1999, “O modo português de estar no mundo. O luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961)”, onde analisa a actividade bibliográfica do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre em redor do “luso-tropicalismo”.
Cláudia Castelo, também nos informa que, só a partir da década de 50, quando o Governo português patrocinou a sua primeira viagem a todas as colónias portuguesas, foi quando Freyre universalizou, com convicção, o luso-tropicalismo. A visita de Freyre a Portugal e às colónias portuguesas acabava por ser determinante para a formulação da sua “tese” pela primeira vez colocada nas conferências lidas em Goa e Coimbra: “Uma cultura moderna: a luso-tropical”, em Novembro de 1951, no Instituto Vasco da Gama; e “Em torno de um novo conceito de tropicalismo”, em Janeiro de 1952, na Universidade de Coimbra. Estas duas conferências foram depois reunidas no livro “Um brasileiro em terras portuguesas”.
Segundo Gilberto Freyre, a introdução deste livro é apenas uma tentativa de sistematização da nova doutrina, que posteriormente aparece desenvolvida em “Integração portuguesa nos trópicos” (1958) e “O luso e o trópico” (1961). Nestas duas obras procura demarcar-se do vínculo que havia estabelecido com o regime político de Salazar e para reforçar o seu argumento, em “Um Brasileiro em Terras Portuguesas”, afirma que também é convidado pelos governos da União Indiana e da União Soviética, fazendo destes convites a prova de que não está conotado com uma ideologia política em particular. A propósito, “importa sublinhar que estas duas obras são ‘encomendadas’ e publicadas por organismos do Estado português. A primeira, pela JIU, na colecção ECPS; a segunda, pela Comissão Executiva das Comemorações do Quinto Centenário da Morte do Infante D. Henrique, no âmbito do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos. O Estado Novo utiliza estes livros supostamente científicos, como instrumento de propaganda e de legitimação da sua política colonial. Se a manipulação político-ideológica é exterior aos textos, no interior dos textos radica a sua possibilidade. O autor não deixa de ser conivente com este processo.”
Em “Aventura e Rotina”, Gilberto Freyre, entre os inúmeros elogios aos sistemas e práticas encontrados entre os portugueses nos trópicos, tece um ou outro comentário laudatório a elementos do sistema russo relativamente à interacção com outros povos: “o exemplo dos russos e de suas experiências ‘aculturativas’ na Ásia Central (…) a ser considerado, dado o critério sociológico – e não estritamente político – de assimilação seguido hoje pelos russos em suas relações com povos de culturas pré-letradas ou retardadas”.
Após a teorização do luso-tropicalismo, em 1951, o ensaio “Integração portuguesa nos trópicos”, que já circulava em meios universitários europeus e norte-americanos, não comporta novidades de fundo. São, no entanto, de registar: o tom mais político e menos sociológico; a introdução dos conceitos de “integração” e “simbiose”; o acentuar da tendência para a generalização e o alargamento do horizonte geográfico a todas as áreas de colonização hispânica dos trópicos. Nesta sua obra é também o próprio Freyre que afirma, que pretende “tornar a luso-tropicologia pragmática, funcional; encerrando um projecto de acção e um sentido político”. Quanto ao conceito de “lusofonia”, o jurista e escritor angolano José Luís Mendonça definiu-o como “um conceito utilitário, operativo e funcional”. As semelhanças existem, já que “pragmático” não difere de “utilitário” e “operativo”.
Para Cláudia Castelo, “(…) a civilização luso-tropical, que Freyre descreve e interpreta, não existe, é antes uma aspiração, um destino”. Com base em pressupostos psicológicos e históricos, Freyre, em “Integração Portuguesa nos Trópicos”, fala-nos das características dessa mesma civilização e no fim prospectiva a sua implementação para os próximos decénios: “Dizia Fernando Pessoa estar ainda reservado para Portugal ‘um grande futuro’. Se por ‘Portugal’ se compreender todo o complexo lusotropical que tem em terras portuguesas da Europa suas principais, mas não exclusivas raízes, a previsão poética se apresenta com alguma consistência sociológica. Uma nova afirmação das energias portuguesas ampliadas em energias lusotropicais é de se esperar nos próximos decénios; na realidade já se esboça. Energias portuguesas e energias brasileiras. Cremos que esse destino se realizará humanamente no duplo sentido do humano; e num espaço que será todo de áreas tropicais ou quase tropicais. Além de povoadas serão essas áreas civilizadas – na verdade já o estão sendo – cada vez mais, por gente camonianamente de ‘vária cor’; e não apenas por brancos ou por caucásicos. Gente de ‘vária cor’ mas a mesma, ou quase a mesma, no seu sentir e no seu agir mais característicos de um novo tipo de civilização, capaz de prolongar valores europeus nos trópicos. Só que essa civilização nova não se conservará, nesses espaços ecologicamente diversos dos europeus, civilização subeuropeia com pretensões a pura ou intransigentemente europeia”.
Hoje, para além da denúncia levada a cabo pela jornalista angolana Luzia Moniz sobre as posições racistas e esclavagistas do poeta Fernando Pessoa, o seu nome surge na CPLP para patrono de um programa juvenil, em nome da tal “lusofonia”.
* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais