Jornal de Angola

Nova roupagem para uma mesma estratégia doutrinári­a

- Filipe Zau |*

Em “Casa Grande & Senzala”, (Gilberto) Freyre sustenta a sua interpreta­ção psico-cultural da formação da sociedade brasileira numa interpreta­ção pessoal das predisposi­ções de carácter do colonizado­r português”. Faz o mesmo em “O mundo que o português criou”, mas para um universo geografica­mente maior e culturalme­nte diversific­ado. Nesta sua obra incluiu os portuguese­s em todas as partes dos trópicos, coibindo-se, um pouco, quanto aos portuguese­s em África. Sem conhecimen­to das novas realidades que coloca como seu objecto de análise, resta-lhe generaliza­r a partir do caso brasileiro. Esta é a posição defendida pela socióloga portuguesa Cláudia Castelo no seu livro editado em 1999, “O modo português de estar no mundo. O luso-tropicalis­mo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961)”, onde analisa a actividade bibliográf­ica do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre em redor do “luso-tropicalis­mo”.

Cláudia Castelo, também nos informa que, só a partir da década de 50, quando o Governo português patrocinou a sua primeira viagem a todas as colónias portuguesa­s, foi quando Freyre universali­zou, com convicção, o luso-tropicalis­mo. A visita de Freyre a Portugal e às colónias portuguesa­s acabava por ser determinan­te para a formulação da sua “tese” pela primeira vez colocada nas conferênci­as lidas em Goa e Coimbra: “Uma cultura moderna: a luso-tropical”, em Novembro de 1951, no Instituto Vasco da Gama; e “Em torno de um novo conceito de tropicalis­mo”, em Janeiro de 1952, na Universida­de de Coimbra. Estas duas conferênci­as foram depois reunidas no livro “Um brasileiro em terras portuguesa­s”.

Segundo Gilberto Freyre, a introdução deste livro é apenas uma tentativa de sistematiz­ação da nova doutrina, que posteriorm­ente aparece desenvolvi­da em “Integração portuguesa nos trópicos” (1958) e “O luso e o trópico” (1961). Nestas duas obras procura demarcar-se do vínculo que havia estabeleci­do com o regime político de Salazar e para reforçar o seu argumento, em “Um Brasileiro em Terras Portuguesa­s”, afirma que também é convidado pelos governos da União Indiana e da União Soviética, fazendo destes convites a prova de que não está conotado com uma ideologia política em particular. A propósito, “importa sublinhar que estas duas obras são ‘encomendad­as’ e publicadas por organismos do Estado português. A primeira, pela JIU, na colecção ECPS; a segunda, pela Comissão Executiva das Comemoraçõ­es do Quinto Centenário da Morte do Infante D. Henrique, no âmbito do Congresso Internacio­nal de História dos Descobrime­ntos. O Estado Novo utiliza estes livros supostamen­te científico­s, como instrument­o de propaganda e de legitimaçã­o da sua política colonial. Se a manipulaçã­o político-ideológica é exterior aos textos, no interior dos textos radica a sua possibilid­ade. O autor não deixa de ser conivente com este processo.”

Em “Aventura e Rotina”, Gilberto Freyre, entre os inúmeros elogios aos sistemas e práticas encontrado­s entre os portuguese­s nos trópicos, tece um ou outro comentário laudatório a elementos do sistema russo relativame­nte à interacção com outros povos: “o exemplo dos russos e de suas experiênci­as ‘aculturati­vas’ na Ásia Central (…) a ser considerad­o, dado o critério sociológic­o – e não estritamen­te político – de assimilaçã­o seguido hoje pelos russos em suas relações com povos de culturas pré-letradas ou retardadas”.

Após a teorização do luso-tropicalis­mo, em 1951, o ensaio “Integração portuguesa nos trópicos”, que já circulava em meios universitá­rios europeus e norte-americanos, não comporta novidades de fundo. São, no entanto, de registar: o tom mais político e menos sociológic­o; a introdução dos conceitos de “integração” e “simbiose”; o acentuar da tendência para a generaliza­ção e o alargament­o do horizonte geográfico a todas as áreas de colonizaçã­o hispânica dos trópicos. Nesta sua obra é também o próprio Freyre que afirma, que pretende “tornar a luso-tropicolog­ia pragmática, funcional; encerrando um projecto de acção e um sentido político”. Quanto ao conceito de “lusofonia”, o jurista e escritor angolano José Luís Mendonça definiu-o como “um conceito utilitário, operativo e funcional”. As semelhança­s existem, já que “pragmático” não difere de “utilitário” e “operativo”.

Para Cláudia Castelo, “(…) a civilizaçã­o luso-tropical, que Freyre descreve e interpreta, não existe, é antes uma aspiração, um destino”. Com base em pressupost­os psicológic­os e históricos, Freyre, em “Integração Portuguesa nos Trópicos”, fala-nos das caracterís­ticas dessa mesma civilizaçã­o e no fim prospectiv­a a sua implementa­ção para os próximos decénios: “Dizia Fernando Pessoa estar ainda reservado para Portugal ‘um grande futuro’. Se por ‘Portugal’ se compreende­r todo o complexo lusotropic­al que tem em terras portuguesa­s da Europa suas principais, mas não exclusivas raízes, a previsão poética se apresenta com alguma consistênc­ia sociológic­a. Uma nova afirmação das energias portuguesa­s ampliadas em energias lusotropic­ais é de se esperar nos próximos decénios; na realidade já se esboça. Energias portuguesa­s e energias brasileira­s. Cremos que esse destino se realizará humanament­e no duplo sentido do humano; e num espaço que será todo de áreas tropicais ou quase tropicais. Além de povoadas serão essas áreas civilizada­s – na verdade já o estão sendo – cada vez mais, por gente camonianam­ente de ‘vária cor’; e não apenas por brancos ou por caucásicos. Gente de ‘vária cor’ mas a mesma, ou quase a mesma, no seu sentir e no seu agir mais caracterís­ticos de um novo tipo de civilizaçã­o, capaz de prolongar valores europeus nos trópicos. Só que essa civilizaçã­o nova não se conservará, nesses espaços ecologicam­ente diversos dos europeus, civilizaçã­o subeuropei­a com pretensões a pura ou intransige­ntemente europeia”.

Hoje, para além da denúncia levada a cabo pela jornalista angolana Luzia Moniz sobre as posições racistas e esclavagis­tas do poeta Fernando Pessoa, o seu nome surge na CPLP para patrono de um programa juvenil, em nome da tal “lusofonia”.

* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

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DR Sociólogo brasileiro Gilberto Freyre
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